Ganhei na quadra, na mega sena. Me lembrei logo dos versos de Aldir Blanc, de que o "amor é a falsa euforia do gol anulado". Ganhar na quadra é o símbolo do "quase". Levei a módica quantia de 198 reais, que até que em um fim de mês vem bem a calhar. O detalhe é que para uma vitória na mega sena, acertando seis números, a gente se prepara a vida inteira. Todos pensam em reunir a família, testemunhas, xerox autenticada do bilhete, aparato de segurança e até acordo nuclear, apenas para percorrer o caminho até a agência do Andaraí da CEF, onde eu já ouvi falar que se pega o dinheiro.
A tal Agência do Andaraí é mais ou menos como Xanadu, Atlântida ou Eldorado: um lugar mítico, de riqueza e felicidade, um sonho recorrente do ser humano. A mega sena, a liberdade absoluta. Nunca mais patrão, nunca mais horários, nunca mais estresse, férias eternas e uns 300 mil pingando todo mês na sua conta. Viver de renda. E não me venham falar que o trabalho enobrece o homem. Eu já trabalhei tanto tempo que já posso mudar meu sobrenome para Orleans e Bragança, de tanta nobreza adquirida com o batente. Mereço uns rápidos 40 anos de descanso, ora essa.
O brabo é acertar seis números.Aí, você acerta quatro e tem a impressão de que gastou a sorte em vão. Fazer a quadra é como um rápido amor de carnaval, fazer a quadra é um karma instantâneo, uma emoção repentina, alegria que vira decepção quase que na mesma velocidade com que a ciência traz o mandiopã ao mundo.
Em suma, fazer a quadra é algo com que não contamos. Ninguém sonha em fazer a quadra. Ninguém joga para acertar quatro números e ganhar duzentas pratas. Aí, dá nisso: até poucas horas atrás, eu não fazia a mais remota idéia de como se recebe a merreca da quadra.
Aí, antes de eu ver num canto de um link na internet que até 800 reais a lotéria é que paga, vou na dica dos amigos. "Acho que é naquela agência do Centro". Qual? "Uma das duas".
Vou até a da Antonio Carlos, dentro do Ministério da Fazenda. Dezenas de guichês com pessoas indisponíveis por trás, filas para tudo, senhas e mais senhas, e uma fila para "atendimento geral", que eu imagino ser a "fila das pessoas que não sabem qual fila pegar".
"É ali dentro da agência", me dizem. Ora, onde é que estou então? Procuro então uma porta giratória, que eu imagino ser uma forma nítida de reconhecer uma agência bancária. Passo por ela, procuro alguém a quem eu possa pedir uma informação. A única pessoa que permite que eu lhe dirija um olhar é o vigilante. Para quem tem Marcele, ter que trocar olhares com vigilante bancário é uma merda federal. Mas vá lá.
A resposta, apontando para um lugar nenhum: "Qualquer pessoa aí te informa". Procuro qualquer pessoa. Consigo interceptar um sujeito alto e de barba, com uma pinta de bem-humorado. Ele pára e diz, "eu sou só um caixa, não trabalho aqui não". E sai correndo, antes que eu possa dizer o que eu quero. É bom correr, vai que ele sabe me ajudar e tem que parar.
Continuo esperando, até que o mesmo cara volta e inadvertidamente vê o livro que tenho em mãos. E repete o nome, rindo: "O coração das trevas". É isso aí. Ele ri, com cumplicidade. Ele sabe que está na capa do livro uma parte dos meus pensamentos no momento.
Olhei para a legião de desempregados/aposentados/remediados que aguardava em vão, sabe-se lá há quantos meses ou anos, por uma solução para seus problemas. Percebi que eu jamais seria atendido, nem que passasse a morar ali. E percebi que nem seria justo tomar o tempo daquela agência para pegar meu prêmio - mas, ora bolas, se a Caixa não tem agilidade para pagar o prêmio, que deixe os jogos para os bicheiros, caramba.
Decido ir até a "outra" Caixa, aquela ao lado do Avenida Central. Ali, uma porta giratória me obriga a deixar quase a cueca antes de entrar. Outra fila para "entrar na fila de quem não sabe em que fila entrar". Catzo. Olho para a dupla de velhinhas da minha frente. Só há dois caixas. Um deles tem um velhinho fazendo algo complexo. No outro, tem um boy com milhares de papéis, metade em sânscrito, outra metade em aramaico. Me parece que vou levar milênios. E, caramba, é apenas a "fila para ver em que fila entrar".
Desisti de tudo. Guardei o bilhete, desolado, convicto de que eu jamais iria receber o prêmio - até ver na internet, em uma linha obscura, que a lotérica tem que pagar, mas até 800 reais. Beleza. De repente, eis que estou com medo de acertar outra quadra ou mesmo a quina, e ganhar mais de 800 reais. Eu não quero ganhar mais do que isso, pelamordedeus.
Ganhar na quadra é pior do que ser vice. E tentar receber um prêmio é um teste de paciência - não sei se fui mal-vestido, ou sei lá o quê. Se fui mal-vestido, da próxima vez que acertar na quadra, juro que eu vou de terno.
Ok, foi péssima, essa. Eu reconheço. Mas ainda quero meus 198 reais.