29 agosto, 2004

Esperança derrotada

Não, este não é um texto sobre Governo Lula, que há dois anos vem falando que o medo vai perder a batalha - mas o fato é que o pavor tem rondado. Este é um texto sobre os dois piores dias do ano: quinta e sexta passadas. Não quero usar o termo "passaralho", porque é uma gíria, até meio engraçadinha, e como o assunto não tem absolutamente graça nenhuma, prefiro usar a palavra CORTE. Sim, porque o que sangra não tem nome de pássaro. O que sangra, é corte.
Foram 15 dias de muita agonia, incerteza, desesperança, amargor. Curioso que em uma das semanas que vivemos sob tensão, houve aniversário todo dia. E para que todas coincidências sejam tristes, todos os aniversariantes em três dias seguidos eram da Economia. E foi exatamente a Editoria de Economia que fechou os dois dias de cortes, da maneira mais terrível que poderia haver: deixando de existir.
Eu sobrevivi - até quando, não sei. Talvez até algum chefe ler meu texto, ou algo parecido. A sobrevivência deveria vir com alívio - já aconteceu antes, sobrevivi a uns oito cortes em diferentes jornais.
O sangue derramado não permitiu o suspiro de alívio. Eu chegava e via um por um, os colegas sendo avisados de que a vida mudara. Pessoas com quem convivi nos últimos nove meses, mais de oito horas por dia, e, de repente, são pessoas que se vão. Quase trinta. Um cortejo triste, conformado, um pouco indignado, mas acima de tudo melancólico. E quem fica, tentando manter a dignidade, trabalhar decentemente - ainda tive que ler alguns sujeitos no site Comunique-se dizendo "lá só tem estagiário e iniciante", em tom depreciativo.
Eu sobrevivi, mas não sei até quando sobrevivo nesse negócio. Porque vi um homem de 70 anos, com a mulher doente, ser mandado embora. Um homem que sempre ganhou pouco, honestamente, um homem de 70 anos que ficava até as quatro da manhã nas sextas-feiras porque fazia questão de trabalhar. É claro, dentro dos números, os 1,6 mil que ele ganha precisam ser economizados.
Que sejam mais de R$ 3 mil que uma empresa gaste com alguém que receba R$1,5 mil.
A demissão desse homem, que é um verdadeiro dicionário ambulante, mostra que somos apenas números. Se prevalecesse algum raciocínio diferente do numérico, surgiria um freio - "Epa, não, esse cara tem 70 anos, corta em outro lugar". Sim, eu queria ter essa chance, de fazer essa troca, mas não me dão isso de jeito nenhum. Eu queria que me perguntassem, que me oferecessem a chance de sair para ele ficar. E é insuportável viver em um mundo onde você não pode salvar o emprego de um cara de 70 anos nem mesmo oferecendo o seu próprio.
A única coisa que consegui fazer foi obrigar os outros a ficar de pé e aplaudir sua saída. Quase um minuto e meio de aplausos de pé, quase 50 pessoas - a metade, já sem emprego.
As pessoas da editoria de Economia ainda passariam mais 24 horas de angústia sem receber qualquer notícia. Sabiam de seu destino, mas ainda esperavam a palavra final, esperavam pela hand of fate ou o que quer que acontecesse, que iria salvar ou mudar tudo, ou mesmo esperavam qualquer resposta, nem que fosse a pior delas. E foi esta a que veio. O fim.
Mais choro, dor e despedidas. Intermináveis despedidas - algumas honradas, como a da editora de Economia, que se recusou a continuar.
E no meio de todo aquele sangue derramado, ficou a estranha sensação pairando acima de tudo: a de que eu sobrevivi, mas algo está morto. Aqueles dois dias foram os últimos de alguma história que eu ainda não sei qual é. Certamente, vem uma vida nova pela frente para todos nós, que foram e que ficaram. Mas a sensação é a de que os cortes na verdade foram um só, "the first cut is not the deepest", caro Cat Stevens, o corte mais profundo não é o primeiro, nem é no coração. Pelo que entendi desses dois dias, jorra muito mais sangue quando o corte é nos sonhos.
Sim, às vezes parece que Deus existe, sim, mas naquele momento está apenas mais longe.