24 fevereiro, 2006

E só para completar o já desenvolvido abaixo:

Cinco músicas dos Rolling Stones para o meu enterro:
1) Wild Horses
2) As tears goes by
3) Ruby tuesday
4) Love in vain
5) You can´t always get what you want

Cinco músicas dos Rolling Stones para celebrar a vida:
1) Sweet Virginia
2) Dead Flowers
3) Let it bleed
4) It´s Only Rock and Roll (But i like it)
5) You gotta move (tem de cantar bêbado)

E é isso.

23 fevereiro, 2006

I can´t get no (Sair deste túnel) - Parte 1


Os caras estão vivos, um viva para eles. Se passaram exatos 25 anos daquela turnê, o que me faz pensar no quanto o tempo passou, no quanto envelheci, ou amadureci, e no quanto eu nunca falei que não queria cantar Satisfaction aos 40. Jagger disse isso lá pelo início dos anos 70 ou final dos 60, quando eles acabaram com o tal sonho que na verdade era só reação. Uma facada em Meredith Hunter e todo mundo desbundou diante daqueles fortões de moto chamados Hell’s Angels. Hunter não teve sorte – enfrentou a faca proteinada do primeiro mundo. Aqui, tivemos três esfaqueados. Copacabana 3 x 1 Altamont. Mas nenhum deles morreu, com o impacto dos bracinhos de pivete daqui. É diferente. Melhor para Copacabana mesmo assim.
Me assusto até hoje. São 25 anos, uma vida inteira – tem gente que nem vive isso – desde que ouvi pela primeira vez a seqüência mágica Start Me Up/Hang Fire/Slave/Little T & A/Neighbors/Black Limousine (talvez não esteja na ordem), o absolutamente perfeito Tattoo You, o disco que fez o mundo praticamente se ajoelhar novamente aos pés dos Stones. É absolutamente assustador lembrar desse tipo de coisa – ou você não tem vertigem quando vê seu tio, pai ou avô falar que “conhece alguém há mais de TRINTA anos”? Trinta anos é tempo de pena máxima. Ninguém deveria conhecer outra pessoa por tanto tempo, a não ser se partilhassem a mesma cabeceira.
Os caras estão vivos, claro. Os acordes de Jumpin Jack Flash e o ambiente absolutamente assustador de saber que havia 1,2 milhão de pessoas espalhadas por Copacabana ouvindo aquilo, aquele massacre de guitarras descompensadas, aquele ataque furioso, os braços de Jagger irrompendo entre prédios de Copacabana, pessoas nas janelas, barcos flutuando perto, enfim, um acontecimento. Filmado e transmitido para Canadá, México e EUA. E os quatro caras ali, me desculpem os deuses do rock and roll, mas sem o mínimo saco. Não, não estou dizendo que não foi bom – até porque eles serão sempre a maior banda de rock do mundo. Eles são os maiores até quando estão sem saco, o show dos Stones é um evento de grandeza maior até mesmo quando eles se entreolham silenciosamente na Satisfaction perguntando “Até quando vamos tocar essa merda?”

I can´t get no (Sair deste túnel) - Parte 2


Independentemente de eles terem saco ou não, claro que são a maior banda de rock and roll de todos os tempos. Mas ainda me espantam alguns críticos – em meio à aridez de compreensão acerca do fenômeno dos Glimmer Twins, que sorte que existe um Jamari França para fazer a tradução correta, para explicar o que está acontecendo com uma lucidez embriagada impressionante. Me espantam que os críticos ainda tenham a cara-de-pau de repetir uma coisa que é dita há MAIS de 25 anos: que os caras estão velhos e acabados. Me espanta que ainda haja crítico que se sinta inteligente e iluminado quando profere estultices como “Exile” é o único disco bom ou “Eles acabaram quando saiu Mick Taylor”.
A crítica de rock é como o comentarista esportivo que gosta de atacante trombador. O Jardel, por exemplo. É péssimo jogador e grande artilheiro. O comentarista cobra gols do Jardel, e o Jardel vai lá e faz. Mas passa a vida inteira esculhambando o cara. Na primeira urinada fora da bacia, o comentarista “descobre” que o Jardel é péssimo jogador e finge que esquece que um dia já o viu como grande artilheiro.
Assim funciona com o rock: o crítico estabelece uma postura e comportamento típico do artista, se esquecendo de que em alguns casos a própria contradição é rock.
Comer morcegos no palco parece uma bundice exagerada, uma palhaçada.
Só que PALHAÇADA ASSIM É ROCK.
Vovó Alice Cooper é rock. David Bowie todo pintado de Ziggy é rock. Jim Morrison de pau para fora é rock. Iggy Pop nu no palco é rock. Frank Zappa produzindo sons incompreensíveis é rock.
E eu diria que uma banda de quatro ingleses tarados beirando os 70 anos que se metem a tocar mi-la-ré no meio das putas é algo absolutamente rock and roll. Dentro do espírito de que o rock é a grande farsa da música. É coisa roubada dos escravos – já viu coisa mais vergonhosa do que o senhor do engenho ir lá na senzala afanar uma propriedade do escravo? Pois é. Farsa pura. Enganação. Mas eu gosto. Demais.
Claro, concordo com os críticos de hoje que cobram a origem garagem das bandas, e que elas tenham de ser “independentes”, “alternativas”, etc. E te digo que sempre se passam três anos entre o surgimento de uma banda alternativa e sua aparição na primeira propaganda de Melissinha da Grendene. Ou no Faustão. É rock? É. Faustão, assim como o era Chacrinha, é rock também. Chato para cacete, eu não gosto. Mas é.
Eu continuo com a definição magistral do produtor Ezequiel Neves: “Os Rolling Stones são uma banda qualquer, mas nenhuma banda é tão qualquer quanto os Rolling Stones”. Graceless lady.

I can´t get no (Sair deste túnel) - Parte 3


Meu primeiro disco dos Stones foi mesmo o Tatoo You. Hesitei na época, entre meus Leds Zeppelin e Deeps Purples de uma puberdade espinhenta e retraída, entre discos mais antigos dos Stones e o “novo”. Optei pelo novo. A mente viaja pelo túnel do tempo, vai até a Gabriela Discos, no Rio Sul, onde hoje em frente à Viena existe uma caríssima New Disc, onde neguinho acha absolutamente normal cobrar 50 reais em um CD simples. Mas lá havia a Gabriela, eu e o meu pai lá, me lembro dele comprar coisas para ele também, e eu saí com o Tatto You na mão. Os acordes de “Start me up” eram mais do que manjados, tocavam mais do que “Festa no Apê” ano passado. Aliás, muito mais. Mas a experiência com a pancadaria que se seguiu, e o prazer de virar o lado do disco (meninos mais novos, vocês não sabem o quanto é interessante ouvir um disco assim, com dois lados) e dar de cara com a terna “Worried about you”, passar voando pela “Tops”, enfim, viajar na “Heaven”, dar de cara com a crosbistilandnashesca “No use in crying” e finalmente desembocar em uma das mais lindas músicas de toda a história da humanidade: “Waiting on a friend”.
Não, isso não poderia ter acontecido com um moleque de 14 anos, com problemas de acne, mais baixo que a maioria dos outros de sua idade, com milhares de paixões reprimidas e complexos. A porra do rock and roll apareceu para me salvar e ser minha ruína. Tatto you.
Dois anos depois, veio um domingo de janeiro em que faltei a um importante enterro – o do cara que tinha comprado o Tatoo You para mim. Naquela tarde/noite, ouvi na Rádio Fluminense FM o programa “Satisfaction”, e se alguém tiver aquele tape eu compro. Difícil escrever sobre esses assuntos sem ir e voltar várias vezes no tempo, mas o fato é que duas décadas depois vi o personagem Rob Gordon, vivido por John Cusack, citar “You can´t always get what you want” como uma das “cinco melhores músicas para enterro”. E me toquei da parada – naquela tarde de janeiro, ouvindo o programa “Satisfaction”, aquele coro de vozes se ergueu, as cordas do violão se deixaram acariciar, e aquele estranho instrumento que só posso classificar como uma trompa anunciou um clima de deserto. Era a própria, Jagger cantando com boca de sapo e alma de príncipe, coachando horrivelmente e sem desafinar um suspiro sequer, até a aceleração da música e o ataque final, venenoso. Mais filho da puta do que nunca – você não pode ter tudo o que você quer, mas se você tentar algumas vezes, obtém até mais do que precisa, berrava Michael Philip Jagger, como em um esporro à geração do Flower Power. Mas ali eu era só um garoto que tinha perdido o pai – e estava longe do enterro, por opção própria. Ali, naquele momento, tive uma das piores notícias do dia: a de que os Stones existiam e que, por causa disso, justamente disso, a minha vida iria continuar.
Thank you for your wine, Califórnia.

I can´t get no (Sair deste túnel) – Parte 4


E eis que os anos se passam e o prefeito do Rio me inventa de colocar esses caras de graça, para atrair multidão. E eu querendo pagar 100, 200 reais para ver os Stones, só que em condições normais, ou seja, em um estádio ou passarela do samba ao lado de 70 mil ensandecidos e drogados. Não queria ver um show dos Rolling Stones em meio ao Armagedon, por mais que eles me lembrem esse tipo de coisa. A sorte é que fui salvo por uma pessoa abençoada, que eu sequer conheço pessoalmente – só pelo telefone.
- Oi, tudo bem? Estou fazendo assessoria XXYY, e estou escolhendo quem vai na área Vip dos Stones? Você quer ir?
- (...)
- Quer?
- Claro, claro (sem acreditar)
Explicação para tal fato? Não tem. Cogito a seguinte: a menina é assessora de imprensa, eu sou repórter do Jornal do Brasil. Até aí morreu Neves. Um dia, ligou para a redação e eu atendi com educação – disso me lembro bem. Ouvi a pauta, e se vacilar até mandei alguém fazer. Ou se não, mandei alguém fazer uma outra à frente. Pronto – belo dia desses, a mesma menina (que é casada, esclareçamos logo) me ligou com oferta de emprego, vinda de uma amiga diretora de conteúdo de site famoso da Internet.
A área Vip foi a salvação, pois foi a única maneira com a qual eu poderia ver o show dos Rolling Stones. Agora, que é sem dúvida uma das experiências mais estranhas e bizarras que já tive (e, claro, uma das melhores), não posso negar. Saber que eu era 4 mil e que lá fora havia 1,2 milhão de visigodos querendo estar onde eu estava, bem, isso me proporciona um conforto incômodo.
Mas não dá para pensar muito nisso quando se entra em uma gigantesca área coberta com centenas de comidas “na faixa”, cerveja de graça, eunucos distribuindo bombons e biscoitos Globo, mucamas seminuas distribuindo barrinhas de cereais, e até mesmo um caldeirão de cachorro-quente.
E André “The Axé” Machado, o cara que significa rock and roll, circulando por lá com outros grandes amigos. Enfim, uma noite perfeita.
Destoou o fato de você ter de ver um dos maiores shows de sua vida ao lado de Álvaro Garnero, Caroline Bittencourt, Dado Dolabella, Paulo Vilhena, Tiago Lacerda, enfim, um monte de gente que não tem absolutamente nada a ver com o espírito encarnado pelos Stones. Se é que aqueles quatro psicopatas ingleses têm algum espírito ainda. Ou carne.

O mundo da área Vip Claro Motorola, no entanto, era de abóbora – tinha hora para acabar, e seria por volta de meia-noite. Findo o memorável show, espera-se mais uma hora para tentar sair mais rápido – por mais paradoxal que isso seja – e a cerveja acaba, os salgadinhos somem, tudo se esvai. Vamos embora? Vamos, todos. E a área Vip fica para trás revelando a realidade do que acontecia no lado de fora, onde estavam os 1,2 milhão de visigodos.
- Por favor, gente. Vamos tirar o crachá e a camiseta e guardar, para evitar qualquer problema lá fora – recomendava um segurança na saída. Barra pesada.
Achei exagero, mas na hora em que saí por uma grade percebi o que acontecia: centenas de pessoas se acotovelavam para.....ver pessoas famosas. E obviamente vaiar os anônimos, como eu. Nem sei se rolaram vaias – saímos rápido e adentramos a Copacabana pós-apocalipse. A atmosfera era de pós-bomba atômica.
Por todos os lados, absolutamente todos, havia camelôs, vendedores de cerveja, churrasqueiras. Polícia para todo lado, deve-se admitir. Mas muitos, muitos camelôs – a própria PM calcula em 10 mil ambulantes que a prefeitura prometeu reprimir. Tudo bem, devem ter dado só um toquezinho.
O chão da pista sentido Arpoador da Atlântida estava alagado por uma lama preta, mistura de urina, fezes, cerveja, lixo e outros dejetos humanos. O fedor era de carceragem da Polinter. Galeras de funkeiros passavam urrando, dezenas de pessoas tentavam empurrar produtos com a língua dos Stones por dois reais – como se houvesse alguma possibilidade de eu abrir minha carteira ali naquele cenário pós-apocalíptico sem ao menos uma alabarda para me proteger.
Na Avenida Princesa Isabel, mais ambulantes e dezenas de ônibus parados, alguns com uma quantidade de pessoas que, racionalmente, lotariam três ônibus. Mas apertando, davam em um só. A correria injustificada, que já faz parte do dia a dia do carioca, acontecia de dois em dois minutos. Na entrada do Túnel Novo, completamente tomado por ônibus parados, havia um engarrafamento humano, de pessoas tomando coragem para entrar nele e seguir até Botafogo. Entramos no túnel, mas na contramão, no buraco de sentido Copa. Não adiantou muito – havia mais ou menos 35 ônibus parados e soltando fumaça.
Os olhos de todos ardiam. Meus pulmões pareciam ter engolido um milk-shake de giletes. O gosto na boca era de furadeira velha. Em volta, outros incautos berravam para tentar passar o tempo mais rápido – consumindo, claro, o pouco de oxigênio que restava naquele vácuo.
Em dado momento, como se tivesse perdido a paciência mas ao mesmo tempo acometido de um surto de alegria, um fanático subiu no corrimão do túnel e berrou, a plenos (?) pulmões:
- I CAN´T GET NO!!!!!
Pensei na hora – nem sair dessa merda desse túnel eu consigo, quanto mais satisfação.

I can´t get no (Sair deste túnel) – Parte 5 – Epílogo


Valeu a pena? Vale, desde 1981, ou desde 1978, que foi quando ouvi “Miss you” pela primeira vez. Valerá sempre.
Não acho bacana o que tentam os fãs do U2, que é a comparação esdrúxula entre as duas bandas só porque as duas estão ao mesmo tempo no Brasil. Prefiro comparações com o Bob Dylan, que foi quem veio junto da outra vez. Mas a questão não é musical – são modos de ver a vida. Eu vejo a minha daquele jeito de Copacabana, tanto na parte Vip quanto na parte do túnel. I can´t get no sair do túnel há muitos anos. Long live rock.

08 fevereiro, 2006

Ácaros e Cornetos











Tudo bem, admito, confesso, aliás. Subestimei o poder que aquelas microaranhas sempre possuíram de atazanar minha vida. Até hoje eu achava que ácaros eram seres ligados a um movimento de hipocondríacos (os primeiros estariam para os segundos como Osama Bin Laden para Bush, ou seja, o inimigo a ser vencido que sustenta a ideologia). Confesso que já achei o cúmulo dos absurdos alguém comprar um aparelho chamado Sterilair que – pasmem! – NEM BARULHO FAZ. Tudo a pretexto de destruir os ácaros, esses seres que, aumentados um milhão de vezes causam asco. Em tamanho natural, mal os vejo.
Mas o fato é que as microaranhas desta vez me ferraram de verde e amarelo. Tive uma reação alérgica inédita na minha vida, fato que me levou ao extremo: procurei ajuda médica. Poucas coisas me motivam menos a colocar os pés na rua do que a ida a uma clínica ou hospital. Mas, após DIAS sem respirar nem pensar direito, lá fui eu à Policlínica de Botafogo, pronto a descobrir a verdade.
E a verdade é que os ácaros do ar-condicionado do local onde trabalho me fazem mal, muito mal. “Se você limpa o seu, não é este o problema”. Eu limpo toda semana meu ar-condicionado, peça indispensável para sobrevivência neste verão simplesmente devastador. Adendo a este fato; faxinas semanais, com uso inclusive de pano úmido, em meu pequeno apê, fazem com que não seja possível uma criação de microaranhas por muito tempo.
Depois da consulta de praxe, bem longa, como devem ser as boas consultas médicas, veio a pior parte: fazer uma radiografia dos “seios da face”, para verificar o septo e a presença de sinusite.
O departamento de radiografia de uma policlínica é um local onde, no mínimo, já deveriam ter pensado em criar um reality-show. Faixas etárias, classes sociais e doenças diferentes são fatores tão determinantes que na minha opinião justificaria a eliminação de um de nós ali naquela sala uma vez por semana às terças-feiras. Um cara de meia-idade, grande e corpulento sem ser gordo, uma mãe jovem, uma moreninha meio patrícia ao celular, um coroa que tossia horrores (mais do que eu, ou seja, muito horrores), duas coroas italianas, um gordão meio boiola e um cara mais ou menos da minha idade. O mais engraçado: até um colega de profissão e de jornal passou por lá, o cara da seção Informática.
Não, eu não falei com ele nem chamei sua atenção. Acontece que eu estava sem óculos, e apesar do cara ser inconfundível (todo careca, óculos e boné), a coincidência era grande demais para ser verdade. Catzo, que eu saiba a sala de espera da Radiologia da Policlínica de Botafogo não é o Lamas para eu achar natural encontrar conhecido. Quantas vezes o cara vai lá por semana. E eu? Não, me recusei a falar. Não devia ser o colega.
Mas ele foi embora logo, e fiquei ali uma hora inteira, talvez até uma hora e dez minutos, esperando minha vez de ser chamado, em meio a diversos testes psicológicos involuntários. A começar pelo próprio comportamento dos técnicos de radiografia – do tipo, “ei, aqui dentro sou eu que mando”, ou “quem são esses caras aí esperando?”, entre eles. O pior é que estão certos – lá, a bola está com eles.
Daí o ritual de chamar os pacientes ser esse: você entrega o pedido na recepção que fica 10 metros antes, e segue para a sala de espera sem nada. Vão chamar seu nome – eu tenho certeza de que eles fazem isso só para que a gente saiba que entre o quiosque da recepção e a sala de espera tem uma ligação que nós mortais não vemos, por isso fica na sua, rapaz. Ou é paranóia demais minha?
Enquanto espero, ouço só as vozes dos técnicos. “Respira”, “levanta a cabeça”, “coloca o braço aqui”, “Não respira”, “Agora vira”, diversas ordens que poderiam indicar efetivamente qualquer coisa, até uma aula de aeróbica dentro daquele recinto.
Chega a minha vez, vem a loura de branco dizendo só meu primeiro nome. Tento acompanhar e ser natural. Mas é difícil ser natural quando se pensa: “Por que diabos a sala de raio X tem um milhão de avisos de perigo, diversas proteções para os técnicos, luz vermelha de aviso, etc, e MESMO ASSIM NÓS FAZEMOS O EXAME DE RAIOS X?”
Sério, por que diabos só com o doente é que não acontece nada? Me xinguem de ignorante, de leigo, mas, catzo, será que só dentro daquele pequeno espaço onde fiquei de queixo para cima é que não pinga a tal radioatividade?
Exame encerrado, sigo para a sala esperar a revelação. O coroa está tossindo isolado dos outros, sentado em uma escada. Deve ter pensado, “Não quero passar tuberculose para os outros”. Me dá arrepios a idéia. A mãe está levando o garotinho para outro andar, enquanto ele berra seguidamente, umas oito ou nove vezes a frase “Já disse que não quero”. Ele uns quatro anos, tempo menor do que aquele que precisarei para parar de ouvir “Já disse que não quero” na minha cabeça.
As coroas italianas parlam como papagaios, uma delas com o braço na tipóia. Meno male.
A rotina é quebrada de forma magistral. Um parêntese: Sim, cheguei a pensar no que aconteceria se caísse um meteoro na Terra que isolasse do resto do mundo a sala de radiografia da Policlínica de Botafogo. Iríamos todos nos apresentar (“Sim, lembra de mim, cheguei aqui tossindo até as tripas”, eu iria dizer, “Oh, eu só vim fazer uma tomografia, tenho um carcinoma, acho que não vou perturbar vocês muito tempo”, responderia algum outro paciente que eu não vi), imaginar formas de sobreviver, talvez quebrar a ressonância magnética para fazer lenha. Claro, na hora do canibalismo, o garotinho iria ser comido primeiro. Baby-beef.
Mas voltando à quebra da rotina: volta a loura de branco e me diz, com imponência: “Oi. Você precisa voltar. Temos de fazer de novo. Não ficou bom”.
Suprema humilhação! O único incompetente a “não ficar bom”. O que os outros iriam pensar? Até a criança de uns cinco anos fez o exame sem precisar de repetição! Sou alvo de olhares de reprovação, e se não fosse o barulho da minha própria respiração eu poderia jurar ter ouvido um “tsk, tsk”. Derrotado, sigo para a sala fazer novo exame, desta vez com sucesso. Tudo para, dali a quatro minutos, ter a experiência nada agradável de, pela primeira vez, ver meu próprio crânio. Sim, é desagradável olhar uma imagem e pensar “um dia eu serei assim”, principalmente quando o que você está olhando não é a foto do presidente do Santander. Ver a própria caveira é um negócio esquisito. Deveria ser proibido.
Só sei que a minha caveira contou para a médica que eu tenho desvio acentuado do septo nasal e que estou com uma grave inflamação nos cornetos.
É, cornetos mesmo. E sem gracinhas pro meu lado.

01 fevereiro, 2006

Tecle M se precisar Matar

Tem coisas que a gente aprende na prática e na convivência - uma delas é simples: ética é limite. Sim, aquilo que definimos como um conjunto de normas comportamentais e profissionais que rege a vida civilizada e em sociedade, na verdade, pode ser definido apenas como "limite". Ou, na versão joselito das coisas, "noção". Na verdade, ética e moral são duas coisas diferentes com a mesma definição - "limite". Quem joga bebê dentro de lagoa não tem ética. Quem pratica pedofilia com bebê na lagoa não tem moral. Quem se joga junto com o bebê na lagoa, pelado, não tem ética e nem moral. Esse deslizamento de texto foi apenas uma tentativa de começar o assunto. Se funcionou, eu não sei. Só sei que devo ter sido o primeiro a faltar com a ética suficiente a ponto de fazer piadinha com o fato absurdo a que assistimos, aquele já batizado de "Iara da Pampulha". Uma episódio que tende a, em centenas de anos, entrar para nossa mitologia, assim como o torturado Negrinho do Pastoreio e o rejeitado Caipora. O bebê da Pampulha um dia terá morrido mesmo, e estará assombrando por lá mesmo existindo os netos da menina salva heroicamente pelos bombeiros. Acompanhar o drama real do bebê da mãe Simone e, no mesmo fim de semana, assistir ao espetacular Munich, do Spielberg (mas que não tem a menor pinta de filme do Spielberg), é o caminho mais curto para levar o sujeito a pensar sobre o ato de matar. Não o "difícil" ato de matar, como em Raymond Chandler, mas no ato corriqueiro, banalizado. Aquele mesmo, estilo Zé Pequeno em Cidade de Deus, quando ele dá um tiro na cabeça do comparsa porque ele está falando demais. O ato já tinha me vindo à mente uma semana antes, com aquela história da estagiária que matou a funcionária para garantir uma vaguinha. Em comum, nesses três crimes hediondos – um deles, o do bebê, por sorte e obra do Divino não chegou a se consumar – apenas um fator: se ultrapassa o limite da ética em nome do pragmatismo. Como em Munich, o filme, em que toda hora surge (e desaparece rapidamente) na cabeça dos matadores israelenses de aluguel o conflito, “Esse que estamos matando participou ou não do atentado de Munique?”, e em nome de receber a grana no fim do mês, manda-se bala e seja o que Deus quiser.
Matar se banalizou? Não sei, me faltam mais diplomas para usar melhor a expressão “banalizar”. Mas o fato é que cada vez mais o ato de matar parece fácil e questão de escolha, opção. E que se diga de bom tom: ética não é questão de escolha, e sim de convivência. Eu levanto do banco de cor laranja no metrô não porque escolhi assim, mas porque espero viver em um mundo nos quais o idoso seja respeitado. A ética escolhe por nós. Apenas cumprimos.
De repente, uma mãe dá o filho para moradores de rua (segundo ela), uma estagiária manda matar a superior, e, alguns anos antes, Golda Meir manda um esquadrão torrar dinheiro pela Europa matando gente que tenha Abu no nome. Foram três escolhas: a mãe optou não gastar seu pouco dinheiro com o bebê, a estagiária optou por acelerar as coisas na carreira e no caso de Munich, todos os caras optaram por continuar trabalhando naquilo. Ainda que às custas de noites de sono e amor perdidas, como se vê no filme. E é assustador, em qualquer um dos três casos (os dois da vida real e o terceiro “do cinema”, apesar de sabermos que é história real), pensarmos que o personagem simplesmente não vislumbrou outra alternativa. Cega, a mãe não pensou em um orfanato, a estagiária não calculou fazer um concurso público ou coisa assim, e os assassinos de aluguel não quiseram deixar a roda da fortuna.
São como o sujeito que, encucado, encurralado, pega um revólver e vai arrumar uma grana para comprar o leite das crianças ou mesmo um Nike Air. O futuro de repente chegou, o tiro de partida foi dado, você ficou preso no partidor e não andou. Diminuem-se as opções com o passar do tempo? Nem sempre, é claro que alguns nascem com pouquíssimas opções. Mas isto é papo sociológico.
Por enquanto, o que me intriga é esta cegueira. E pensar no que me faria ser um assassino – uma final da Libertadores entre Flamengo x qualquer outro time do Rio? Religião? Política? Fome? Dinheiro? Ciúme?
Coisas que poderiam acontecer com qualquer outro ser humano? Em resumo, posso virar um assassino facilmente – e não deveria ser assim.
Este é o ponto: saber que qualquer um pode listar o “te matar” como forma de tirar você do caminho. É algo pior do que “Deus está morto”. Na verdade é como se fosse “Deus liberou geral”.
Que Ele nos perdoe.