Dos tempos em que Hollywood era Azevedo
O Globo descobriu a pólvora na edição desta quarta-feira do Segundo Caderno: ver Vinícius, de Miguel Faria Jr., faz o espectador sentir uma saudade dolorosa de um Rio que poderia ser mas não foi. Não entendo como a matéria demorou tanto para sair - por mim, este seria o tom da resenha do belíssimo documentário (aliás, no meu tempo documentário era associado a uma coisa chata antes do filme, que bom que isso mudou) que assume o caráter de imperdível nos tempos sem graça de hoje. Imagens de uma Ipanema ainda não urbanizada, de um Leblon longínquo e rural, se sobrepõe às de Vinicius vivendo em plena vida na Cinelândia, nos cafés ao lado de Manuel Bandeira, temendo, como conta toda sua obra, a morte e o desamor.
Eu mesmo, ali na sala do Espaço Unibanco, vi descer uma lágrima ao ver uma imagem de Copacabana e pensar no que é hoje - no que anos de governos sem escrúpulos, de Brizolas, Moreiras, Alencares e Garotinhos, e de discriminação da hedionda Brasília fizeram a esta cidade que não poderia ter outro destino a não ser o de ser a mais bela de todos os tempos. Um destino, garanto, que pelo menos em um segundo se cumpriu - ou não teríamos sequer o Túnel Alaor Prata. Vinícius e sua obra nos ensinam, principalmente no filme, que viver o Rio é questão de momento - é poeta saindo do Rebouças após viagem longa e dando de cara com a Lagoa, é avião aterrando no Santos Dumont com Pão de Açúcar, é caldo de cana na Praça Tiradentes e chope em pé na Cobal do Leblon.
Fora isto, como sabemos, é morte, tiroteio, ônibus queimados com crianças, extorsão, formação de máfias em qualquer atividade comercial, informalidade, desordem urbana, violência e corrupção. Coisas que já deviam existir na época de Vinícius.
Mas, coming back to the cold cow, Vinícius é essa lembrança incômoda, tal e qual visão de perna para aleijado, de que poderíamos ser outra coisa, e não o presente sangrento. As interpretações, tirando um incompreensível hip-hop que quebra a harmonia do filme, são todas fiéis, e a impressão que se tem é que os artistas se transportaram um pouco para o tempo do poeta. Até mesmo Mariana de Moraes, de quem nunca enxerguei talentos a não ser aqueles à flor da pele vistos em Fulaninha, interpreta com graça e a suavidade(deve ser genética) a Coisa mais linda, parceria do poeta com Carlos Lyra. Do outro lado do hemisfério (em termos musicais), Edu Lobo mostra uma erudição e talento ao violão que eu nunca tinha reparado, em Berimbau. E a revelação de 2004, Monica Salmaso, faz a platéria do cinema encher os olhos dágua em Canto Triste. Faltou, claro, Samba em Prelúdio, seguramente uma das 10 mais lindas músicas da história da MPB. Talvez ninguém tivesse se aventurado a chegar aos pés da baiana Maria Creusa, quem sabe.
Vinícius era singelo - e esta é uma acusação, feita por uma amiga paulista há anos. Compreensível - a dureza do concreto, talvez, não deixe ver que a singeleza do poetinha era uma forma de trocar de mulher como quem troca de roupa. Volúvel? Não, provavelmente Vinícius era adicto em amor, viciado no susto do primeiro beijo, precisava da descarga química de adrenalina, mas como poeta não sabe cientifiquês, trocava tudo por paixão. Talvez tenha perdido a cumplicidade ao casar nove vezes. Já o Tom, que casou menos, tem outras ondas, por isso a parceria deu tão certo.
Onde os dois mais se aproximam, além da letra de Insensatez, deve ser quando Tom explica porque Hollywood quer dizer Azevedo. Sem os diminutivos do poetinha, Jobim explica que Holly não é feriado em inglês. Feriado é Holy Day, com um L só.
Holly é um planta de lá da América, cujo parente mais próximo é o Azevim, aqui no Brasil. E Wood é sufixo para grupo de arbusto, árvore, capim, etc. Seria um arbusto de azevim, ou seja ou Azevedo.
Isto também não tem no filme - ora, é sobre Vinícius. Mas reflete a naturalidade dos dois, ao buscar temas e assuntos para preencher as horas entre uma minisaia e outra. Daí o filme começar e terminar com a carta de Rubem Braga:
Meu caro Vinícius de Moraes: escrevo daqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou. Será a primeira, desde 1913, sem a sua participação.
Quando se pensa que, acima dos problemas de urbanismo e violência do Rio, não se tem mais pessoas que falem em Hollywoods, Azevedos e saúdem a primavera como um fato grave, sim, aí temos certeza do que poderíamos ter sido. Ou do que tentamos, um dia longe, ser.