28 junho, 2005

Sobrevivência

Júlio Cortázar em seu ótimo conto "Exercícios para chorar", manda o leitor imaginar um penhasco qualquer no estreito de Magalhães, onde ninguém passa,nunca. O leitor é imediamente transportado a uma solidão diferente, umavastidão que não é humana, e sim no máximo divina. Ou da natureza, como preferir. Pensei em Cortázar e nesta experiência quando me vi às oito horasde uma manhã de domingo em uma igreja no bairro suburbano do Engenho de Dentro, em um curso de noivos - obrigatório da Igreja Católica para quempretende casar sob seu teto. Exercício para chorar? Imaginar que há histórias acontecendo em uma longínqua igreja do subúrbio em uma manhã fria de um domingo de outono. Em uma pequena sala, 18 casais aprendiam sobre avida com quatro casais de perfis completamente diferentes um do outro. Uma experiência que me mostrou, pela primeira vez, talvez, em meus anos de irredutibilidade e egoísmo, que é possível aprender algo com quem pensa completamente diferente - sim, a sobrevivência é sempre a melhor lição que alguém mais velho pode dar.
- Se você está feliz, bata palmas!
Este era um dos versos de uma das músicas que éramos obrigados a cantar.Após esse preâmbulo, iam entrando os casais, cada um com uma palestra que variava entre uma hora e noventa minutos - somente o padre falou (e brincou) duas horas.A organização? Perfeita. Ao marcar a ida, alguém que atende o telefone dizque comida você vai levar. Não é muita coisa, mas no final acaba acontecendo um baita almoço. Os refrigerantes são comprados pelos voluntários, mas na saída cada casal colabora com quanto quiser. No saldo final, os casais tomam um café reforçado, almoçam e lancham.Lá em frente à Estação Engenho de Dentro da Central, e em frente ao futuro Estádio João Havelange, um Brasil em que somar e dividir dá certo, nem que seja por um domingo.
Bruna e Daniel
Não foi possível saber a profissão deste casal de voluntários - só que moram em Jacarepaguá, e vão ao Engenho de Dentro pelo menos uma vez por mês dar o curso de casal. Ele, uns 40 anos, cabelo estilo Daniel Azulay, torcedor do Flamengo que na década de 80 foi muito ao estádio. Ela, quase da mesma idade, não muito bonita. Os dois brincam de interromper um ao outro toda hora, para dar a idéia da importância da tolerância e aceitação dos defeitos. Os dois são jovens, mas vão casar uma filha agora. Ao que parece, sempre foram assalariados. 'Conheci a Bruna no meu trabalho, ela me viu e se apaixonou logo", disse Daniel, brincando. Têm casa própria, porque batalharam muito - a fé religiosa parece vir do sangue escorrido de cada uma dessas batalhas. Não herdaram nada. Falam em brigas, mas ao mesmo tempo reclamam que muita gente "se separa e se arrepende depois". Os dois não param de sorrir - mas um sorriso triste, sincero e cansado. "Eu e o Daniel não conseguimos mais ir ao cinema", diz a Bruna. "Eu bem queria ver o jogo do Flamengo, mas o curso vai até as 17h". Nesse dia, o Flamengo perdeu de 4 a 2 para o Corinthians. Mas acho que Daniel não ligou muito - o menino solteiro dos anos 80 talvez ligasse, mas o adulto de amor curtido pelo tempo prefere a Bruna e suas conquistas de sobrevivência.
Rodolfo e Maria Ivone
Rodolfo é grisalho, de bigode de fazendeiro, alto, uns 55 anos. Sua esposa, Maria Ivone, sofre da coluna e o casal vai raspar as economias para operar. Ambos têm sotaque do interior de Minas, aquele interior de cidades com nomes simples e diferentes como "Moeda". Ela conta sua história: o pai foi avalista e teve que dar todo seu patrimônio para pagar uma dívida que não era dele. Logo depois, adoeceu e não pôde mais trabalhar.
A mãe dela juntou tudo e todos, foram para o único bem que restava: um pequeno sítio sem luz, água, gás ou telefone. Com sotaque bonito e postura atormentada pela dor e pelos anos, Ivone fala sobre casamento e dinheiro: "Às vezes um carinho, um chamego, um beijinho, vale muito mais do que qualquer coisa que a gente compra por aí, muito cara, sem utilidade".
A mãe plantou, capinou, cozinhou, lavou roupas, arrumou a casa, cuidou do pai doente e educou os cinco filhos, levando-os à escola longe de casa, isto é, do sítio. Lá no interior, enquanto a História por aqui acontecia, Maria Ivone tinha um exemplo.
Talvez neste mesmo sítio, Rodolfo tenha visto um Corcel de que gostou. O sogro, o tal que ficou doente mas melhorou, recomendou, "compra um Fusca", ele foi e gastou dinheiro no Corcel, para logo depois comprar um Fusca mesmo, arrependido. "A vida não é para ostentação". Pelo menos a vida dos dois não foi. E eles aconselham a cada um dos 18 casais: guardem dinheiro, sempre.
Ivan e Marisa
Pouco antes do curso, na lotada missa das sete, o padre homenageou, junto com toda a paróquia, seu Ivan e dona Marisa, ambos voluntários das pastorais. Eles faziam 39 anos de casados, subiram no palco e diante de 400 pessoas disseram eu te amo e se beijaram levemente na boca.
Ela nos conta que não acreditava em nada. Até que um dia, o filho mais velho sofreu um acidente que quase lhe custou a vida - mas custou a liberdade: ficou paralítico. "Mãe, queria que a senhora me ensinasse a rezar", disse o filho, sob o temor da morte. Dois anos depois, a cena se repetiu na vida da Marisa: só que com o filho mais novo. Ela mesmo aprendeu a rezar e hoje em dia vai uma vez por mês dar aulas gratuitas para novos casais. Um dia, viu que a amiga 30 anos mais jovem tinha engravidado e resolveu acompanhar a gestação. Sendo contra o aborto, e sabendo quem poderia ser o pai, ficou acompanhando com Ivan o tempo todo. Nasceu o menino, não deu outra: "A mãe abandonou. O pai é traficante, ora. Se eu deixar, é mais um que vai para a rua". Marisa cuida hoje de mais um filho - cujo pai certamente não aprendeu a rezar.
Mário e Ana Paula
Ele, militar reformado da Aeronáutica, começou a carreira no fim dos anos 50. Ela, professora primária. Falam das dificuldades, dos tempos em que usaram móveis usados, por outro militar que cedera o apartamento. Os dois, magoados com a vida que lhes trouxe dois filhos (um homem e uma mulher) com casamentos fracassados. Mário quase grita ao falar com aqueles jovens que têm a pretensão de se casarem. Vê-se que o curso para ele é uma terapia. Diante do olhar submisso e doce da professora/mulher, ele dispara, com seu sotaque nordestino: "Deus criou a mulher para ser uma auxiliar do homem", "O homem está sempre pronto para o sexo, mesmo que venha do enterro da mãe", "A mulher é que tem que fazer os cálculos para não engravidar, ao homem cabe outra função", "Quando eu comecei, eram duas, três por dia". Mário é como nossos avós ou pais, só que de formação rígida familiar-nordestina-militar. Defintivamente, não é um homem de letras.
Ana apenas diz que o ama. E isso é de uma simplicidade arrasadoramente incontestável - haja visto que é um amor como deve ser: incompreeensível.
"As estatísticas dizem: 80% das separações são culpa da mulher", diz ela, tirando o pecado do mundo, purificando a todos nós, homens. "Cuidem bem deles, que eles ficarão em casa", completa.
Os dois se dizem realizados - sobreviveram. A eles mesmos, até, pode-se dizer.
São quatro casais? Sem dúvida, até mais que isso. São quatro aventuras vividas em um Brasil tão cheio de diferenças que às vezes vira ininteligível. Um domingo desses farei meu exercício para chorar de um modo diferente do que manda Cortázar, vou pensar naquela pequena Igreja no Engenho de Dentro e em como Mário e Ana Paula, Ivan e Marisa, Rodolfo e Maria Ivone e Bruna e Daniel, tão diferentes e paralelos, conseguiram se encontrar - não só os quatro casais, mas entre eles, como duas pessoas. E no amor mais como convivência e parceria do que como romance, por mais tristemente sóbrio que possa parecer.

22 junho, 2005

Democracia

Gosto de citações, mas admito que não sou muito bom nelas. Nunca lembro, por exemplo, quem declarou que a democracia não é um sistema infalível de governo mas ainda é o melhor de todos. Churchill? Digamos que Churchill seja uma espécie de Neném Prancha da política, a quem todas as frases espirituosas são atribuídas sem checagem anterior. Enfim, suponhamos que tenha sido Churchill. Isto posto, vale dizer que poucas coisas fazem tão mal a esta frase quanto um depoimento de Roberto Jefferson ou um de Maurício Marinho só que presidido pelo senador goiano Maguito Vilella. Os dois eventos certamente produzem no espectador mais lúcido a noção perfeita de que a democracia, pelo menos no Brasil, fracassou. Não que o regime militar tenha sido bem-sucedido. Pelo contrário. Talvez o regime militar tivesse sido a oportunidade histórica – e perdida – para um governo preparar o país e o povo para uma democracia real, participativa mas sob tutela de uma Constituição melhor aprovada. Perdida a chance, agora vemos estes espetáculos deprimentes – e o que mais deprime é que sabemos a verdade: em um evento teoricamente destinado a apurar irregularidades, os parlamentares preocupam-se apenas com a câmera da GloboNews.
A naturalidade com que se sempre falou de cargos como moeda entre partidos na República talvez nos devesse pensar mesmo na Monarquia como melhor regime. Ou no despotismo esclarecido. Ouvir Maurício Marinho falar que “percebemos que o contrato com a Xerox estava acima dos valores de mercado e fomos fazer pesquisa de mercado” causa a impressão de que o deputado que o indicou (José Chaves, de Pernambuco) deveria responder a cada vez que houvesse um superfaturamento “por distração”, como deu a entender.
Cada deputado ou senador deveria responder abertamente pelo seu tutelado. O povo deveria ser informado por Diário Oficial destas negociações entre Executivo e Legislativo para se manter a governabilidade. Te dou cem cargos D.A.S. e você me dá um voto para transformar em lei esta MP. É assim? Deixe-nos participar, então. Que se publique no início de cada mês que ganhou cargo e a origem. Por que não uma emenda constitucional? Assim, o povo poderia responsabilizar o José Chaves quando o Maurício Marinho aparecesse em uma gravação embolsando R$ 3 mil.
Agora, pior ainda é ter que acompanhar os trabalhos de uma CPI no Legislativo brasileiro. A ânsia por aparecer transforma o que deveria ser uma investigação profissional em uma reunião de moleques. Sujeitos com quatro, cinco mandatos, se comportam como canalhas menores, senadores da República como a sra. Heloisa Helena ficam andando de camiseta e invadindo microfones alheios para falar “em nome de advogados do depoente (no caso, Maurício). Maguito, que presidia a sessão, foi (bem) denunciado pelo deputado paulista e petista José Eduardo Cardoso: ao permitir cinco minutos de suspensão da sessão para Maurício “conversar com os advogados”, quebrou o regimento interno. Mas é claro que o PT vem quebrando muito mais regimentos – até os próprios, que nós sabemos.
Eu não saberia o que dizer, por exemplo, a um carioca que tem a coragem de votar em uma figura como Eduardo Paes – completamente destemperado e interrompendo o depoimento a todo instante, nitidamente para aparecer.
Enfim, um fracasso democrático. Todos nós já sabemos que não vai dar em porra nenhuma, ainda mais sendo feito desta maneira. Triste República. Não sei até quando com R maiúsculo, pois um dia vai ser como república de estudantes.

01 junho, 2005

Um passo para trás, por favor

Que temos uma elite sórdida, é ponto pacífico. Falar em concentração de renda no Brasil é discussão sobre fato consumado e tão batida quanto diferenciar Pelé e Édson Arantes. Basta o sujeito-cidadão comparecer a algum jantar, ou posse de secretário de Estado, ou enterro de integrante de conselho patronal ou mesmo chá beneficente de rico que mora perto de favela. O puxa-saquismo chega a constranger, o falso paternalismo é de dar medo, e se perde completamente a esperança em um país (?) com mais oportunidades.
Mas se eu fosse um estudioso, teórico da área, e precisasse de um pedaço desta elite para uma espécie de biópsia, para analisar a doença, eu não teria dúvidas sobre qual o cancro a ser estudado: o empresariado de ônibus, de longe o mais cínico e o que mais atenta contra a vida humana.
Para começar, conseguiram, nos atuais governos (?) estadual e municipal, obter licença dos órgãos responsáveis para inverter a entrada e a saída dos ônibus cariocas, deixando-os parecidos com os de São Paulo. A medida só teve um único objetivo: criar entraves à prática da gratuidade para idosos e estudantes. E é simples: criando uma estrutura que obrigasse o passageiro a jamais sair pela porta em que entrou, e deixando na entrada um espaço limitadíssimo, é óbvio que caberiam menos estudantes por viagem. Antes de serem criados os cartões eletrônicos, a cena - extremamente deprimente - mais comum era ver dezenas de estudantes e idosos, muitos em pé, se acotovelando em um espaço exíguo lá na frente. Alguns motoristas ainda deixavam os mesmos entrarem pela porta de trás, mas vinha logo a advertência do fiscal: ninguém pode entrar por trás (pena que as mães de alguns empresários não tenham isto como regra em seu ofício diário na zona).
Agora, se vangloriam de terem acabado com o vale-transporte de papel, e com isso terem acabado com uma das fontes de custeio do tal transporte alternativo, as vans (tento evitar usar, até agora tive sucesso). Resultado: ônibus AINDA MAIS LOTADOS, tornando a vida dos passageiros uma bosta ainda maior do que já era. Em alguns bairros menores - como a Urca - a sordidez alcança pontos surpreendentes:nos horários de saída dos colégios, as empresas cortam os ônibus, aumentando o intervalo e simplesmente entupindo de alunos cada um dos veículos.
O problema é que na hora em que os alunos deixam os colégios, por volta de meio-dia, 13h, o fluxo de passageiros também é intenso. Assim. é comum um busão sair da Urca completamente lotado como se estivesse deixando o Américo Fontenelle às 18h.
Tal fenômeno, de lotação estourando em horários off-rush, já está em andamento no Metrô - outro dia viajei em pé (como sempre, aliás) em um vagão completamente lotado....de idosos. Uns 30 idosos em pé. Até que vi a cena que diz tudo sobre o que acontece neste nosso Brasil velho de guerra, pelo menos no que se refere a duas áreas - transporte público e tratamento aos idosos: uma senhora de uns 70 anos levantou e cedeu lugar para uma senhora que parecia ter 80.
"Não verás país nenhum" era para ser apenas o título de um livro do Loyola Brandão, e não uma profecia.

O capacete

George Lucas realmente deu um nó em nossos corações e mentes que poucos cineastas deram, com essa história de fazer depois o que aconteceu antes. Explica-se: eu e Marcele deixamos a sessão de domingo do ótimo "A vingança de Sith" com um sentimento estranho, diferente. A começar, a sensação de que acabou - não apenas a crença de que Lucas simplesmente não vai continuar, mas algo muito mais violento: o filme não apenas acabou, como já vimos a seqüência há mais de 25 anos.
Ou, para ser mais exato, há uma vida atrás - quando éramos crianças. Isto é completamente vertiginoso - tem também a sensação de vazio, de saber que há um hiato de mais de 20 anos também no tempo cronológico daquele universo, de que vimos finalmente aquilo que parecia ser apenas uma lenda ("as velhas batalhas dos Jedis", há quanto tempo não ouvimos falar disso?).
Não, uma continuação feita para explicar o que aconteceu antes é realmente diferente. O que está feito, está feito, nada é para remediar, tudo é para tentar explicar. Esqueçam Antes do Pôr-do-Sol e a ternurinha de um reencontro. O que George Lucas nos faz é revelar como se fez o maior vilão de nossas infâncias, o tal Darth Vader, é mostrar os bebês Luke Skywalker e Leia Organa (hoje, um coroa e uma matrona, dando entrevistas no DVD), é mostrar a batalha épica na qual o rosto do vilão, até então mais para Felype Dylon, vira uma espécie de Cesar Cals com acne.
Devo confessar: para um cara de 37 anos, que foi ao Coral/Scala ver Star Wars de 442 (Lins-Urca) em 1978, poucas cenas no cinema vão ficar mais na memória do que o velho e conhecido capacete negro baixando sobre o rosto desfigurado de Anakin, com aquela inconfundível música ao fundo.
Saí do cinema, sim, com aquela sensação terrível de que a vida passa. O bom senso recomenda que não tomemos consciência disso todos os dias.
Que a Força esteja com vocês.
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Sim, após sete meses, estou de volta. Me emputeci com um maluco que entrou aqui para atacar minha sobrinha, Luiza, e pedi para apurarem - tudo o que o pessoal da cana dura me bateu é que o nome do cara que usava conexão pública era Marcelo e trabalhava na UFRJ. O problema é que eles me disseram que para seguir adiante iriam precisar de um mandado, ou sejam, uma queixa formal, que poderia culminar em cana dura pro cara. Como não conheço ninguém com este nome, resolvi deixar para lá e voltar a escrever aqui.
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Dentro do projeto Fim do Abandono, também está meu Multiply (http://gustones.multiply.com) e o blog Nove Meses (http://novemeses.blogspot.com), este sobre o campeonato brasileiro - no qual Marcele vai dar uma ajeitada. Para quem não sabe, o Nove Meses virou uma coluna no site http://www.toquedecraque.com.br , embora meu amigo Alex do Triplex esteja mofando injustamente que eu a atualize há quatro rodadas. Prometo que esta semana vou cair dentro.
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Nada como a insônia para fazer alguém escrever inutilidades na internet.