Sobrevivência
Júlio Cortázar em seu ótimo conto "Exercícios para chorar", manda o leitor imaginar um penhasco qualquer no estreito de Magalhães, onde ninguém passa,nunca. O leitor é imediamente transportado a uma solidão diferente, umavastidão que não é humana, e sim no máximo divina. Ou da natureza, como preferir. Pensei em Cortázar e nesta experiência quando me vi às oito horasde uma manhã de domingo em uma igreja no bairro suburbano do Engenho de Dentro, em um curso de noivos - obrigatório da Igreja Católica para quempretende casar sob seu teto. Exercício para chorar? Imaginar que há histórias acontecendo em uma longínqua igreja do subúrbio em uma manhã fria de um domingo de outono. Em uma pequena sala, 18 casais aprendiam sobre avida com quatro casais de perfis completamente diferentes um do outro. Uma experiência que me mostrou, pela primeira vez, talvez, em meus anos de irredutibilidade e egoísmo, que é possível aprender algo com quem pensa completamente diferente - sim, a sobrevivência é sempre a melhor lição que alguém mais velho pode dar.
- Se você está feliz, bata palmas!
Este era um dos versos de uma das músicas que éramos obrigados a cantar.Após esse preâmbulo, iam entrando os casais, cada um com uma palestra que variava entre uma hora e noventa minutos - somente o padre falou (e brincou) duas horas.A organização? Perfeita. Ao marcar a ida, alguém que atende o telefone dizque comida você vai levar. Não é muita coisa, mas no final acaba acontecendo um baita almoço. Os refrigerantes são comprados pelos voluntários, mas na saída cada casal colabora com quanto quiser. No saldo final, os casais tomam um café reforçado, almoçam e lancham.Lá em frente à Estação Engenho de Dentro da Central, e em frente ao futuro Estádio João Havelange, um Brasil em que somar e dividir dá certo, nem que seja por um domingo.
Bruna e Daniel
Não foi possível saber a profissão deste casal de voluntários - só que moram em Jacarepaguá, e vão ao Engenho de Dentro pelo menos uma vez por mês dar o curso de casal. Ele, uns 40 anos, cabelo estilo Daniel Azulay, torcedor do Flamengo que na década de 80 foi muito ao estádio. Ela, quase da mesma idade, não muito bonita. Os dois brincam de interromper um ao outro toda hora, para dar a idéia da importância da tolerância e aceitação dos defeitos. Os dois são jovens, mas vão casar uma filha agora. Ao que parece, sempre foram assalariados. 'Conheci a Bruna no meu trabalho, ela me viu e se apaixonou logo", disse Daniel, brincando. Têm casa própria, porque batalharam muito - a fé religiosa parece vir do sangue escorrido de cada uma dessas batalhas. Não herdaram nada. Falam em brigas, mas ao mesmo tempo reclamam que muita gente "se separa e se arrepende depois". Os dois não param de sorrir - mas um sorriso triste, sincero e cansado. "Eu e o Daniel não conseguimos mais ir ao cinema", diz a Bruna. "Eu bem queria ver o jogo do Flamengo, mas o curso vai até as 17h". Nesse dia, o Flamengo perdeu de 4 a 2 para o Corinthians. Mas acho que Daniel não ligou muito - o menino solteiro dos anos 80 talvez ligasse, mas o adulto de amor curtido pelo tempo prefere a Bruna e suas conquistas de sobrevivência.
Rodolfo e Maria Ivone
Rodolfo é grisalho, de bigode de fazendeiro, alto, uns 55 anos. Sua esposa, Maria Ivone, sofre da coluna e o casal vai raspar as economias para operar. Ambos têm sotaque do interior de Minas, aquele interior de cidades com nomes simples e diferentes como "Moeda". Ela conta sua história: o pai foi avalista e teve que dar todo seu patrimônio para pagar uma dívida que não era dele. Logo depois, adoeceu e não pôde mais trabalhar.
A mãe dela juntou tudo e todos, foram para o único bem que restava: um pequeno sítio sem luz, água, gás ou telefone. Com sotaque bonito e postura atormentada pela dor e pelos anos, Ivone fala sobre casamento e dinheiro: "Às vezes um carinho, um chamego, um beijinho, vale muito mais do que qualquer coisa que a gente compra por aí, muito cara, sem utilidade".
A mãe plantou, capinou, cozinhou, lavou roupas, arrumou a casa, cuidou do pai doente e educou os cinco filhos, levando-os à escola longe de casa, isto é, do sítio. Lá no interior, enquanto a História por aqui acontecia, Maria Ivone tinha um exemplo.
Talvez neste mesmo sítio, Rodolfo tenha visto um Corcel de que gostou. O sogro, o tal que ficou doente mas melhorou, recomendou, "compra um Fusca", ele foi e gastou dinheiro no Corcel, para logo depois comprar um Fusca mesmo, arrependido. "A vida não é para ostentação". Pelo menos a vida dos dois não foi. E eles aconselham a cada um dos 18 casais: guardem dinheiro, sempre.
Ivan e Marisa
Pouco antes do curso, na lotada missa das sete, o padre homenageou, junto com toda a paróquia, seu Ivan e dona Marisa, ambos voluntários das pastorais. Eles faziam 39 anos de casados, subiram no palco e diante de 400 pessoas disseram eu te amo e se beijaram levemente na boca.
Ela nos conta que não acreditava em nada. Até que um dia, o filho mais velho sofreu um acidente que quase lhe custou a vida - mas custou a liberdade: ficou paralítico. "Mãe, queria que a senhora me ensinasse a rezar", disse o filho, sob o temor da morte. Dois anos depois, a cena se repetiu na vida da Marisa: só que com o filho mais novo. Ela mesmo aprendeu a rezar e hoje em dia vai uma vez por mês dar aulas gratuitas para novos casais. Um dia, viu que a amiga 30 anos mais jovem tinha engravidado e resolveu acompanhar a gestação. Sendo contra o aborto, e sabendo quem poderia ser o pai, ficou acompanhando com Ivan o tempo todo. Nasceu o menino, não deu outra: "A mãe abandonou. O pai é traficante, ora. Se eu deixar, é mais um que vai para a rua". Marisa cuida hoje de mais um filho - cujo pai certamente não aprendeu a rezar.
Mário e Ana Paula
Ele, militar reformado da Aeronáutica, começou a carreira no fim dos anos 50. Ela, professora primária. Falam das dificuldades, dos tempos em que usaram móveis usados, por outro militar que cedera o apartamento. Os dois, magoados com a vida que lhes trouxe dois filhos (um homem e uma mulher) com casamentos fracassados. Mário quase grita ao falar com aqueles jovens que têm a pretensão de se casarem. Vê-se que o curso para ele é uma terapia. Diante do olhar submisso e doce da professora/mulher, ele dispara, com seu sotaque nordestino: "Deus criou a mulher para ser uma auxiliar do homem", "O homem está sempre pronto para o sexo, mesmo que venha do enterro da mãe", "A mulher é que tem que fazer os cálculos para não engravidar, ao homem cabe outra função", "Quando eu comecei, eram duas, três por dia". Mário é como nossos avós ou pais, só que de formação rígida familiar-nordestina-militar. Defintivamente, não é um homem de letras.
Ana apenas diz que o ama. E isso é de uma simplicidade arrasadoramente incontestável - haja visto que é um amor como deve ser: incompreeensível.
"As estatísticas dizem: 80% das separações são culpa da mulher", diz ela, tirando o pecado do mundo, purificando a todos nós, homens. "Cuidem bem deles, que eles ficarão em casa", completa.
Os dois se dizem realizados - sobreviveram. A eles mesmos, até, pode-se dizer.
São quatro casais? Sem dúvida, até mais que isso. São quatro aventuras vividas em um Brasil tão cheio de diferenças que às vezes vira ininteligível. Um domingo desses farei meu exercício para chorar de um modo diferente do que manda Cortázar, vou pensar naquela pequena Igreja no Engenho de Dentro e em como Mário e Ana Paula, Ivan e Marisa, Rodolfo e Maria Ivone e Bruna e Daniel, tão diferentes e paralelos, conseguiram se encontrar - não só os quatro casais, mas entre eles, como duas pessoas. E no amor mais como convivência e parceria do que como romance, por mais tristemente sóbrio que possa parecer.