29 julho, 2004

29 de julho

Há exatamente dois anos, por volta das 20h30, ela apareceu na minha frente. Um momento daqueles inesquecíveis como um gol em final de campeonato, como o dia em que as luzes se apagaram (ou, no caso, acenderam), um daqueles momentos que a gente guarda, tal e qual o último presente que um parente querido nos deu ou a primeira ida à escola. Estava tocando, como muita gente já sabe, “I don’t want to talk about it”, do velho e bom Rod Stewart. Curioso é que exatamente no momento em que se definiria que eu jamais voltaria a ter a sensação de fossa tocasse exatamente um hino do gênero. Talvez um sinal. A música em nossas almas era, na verdade, “Come Rain or Come Shine”, na voz de Al Jarreau. No céu, se existir um, estaria tocando “Georgia on my mind”, não sei bem porquê. Amor, afinal, também é como jazz: se precisa explicar, não vai dar para entender.
Hoje, provavelmente, no filme de nossas vidas toca “Somewhere (Over the rainbow)”, na voz de Ray Charles – versão que classifico como “um dos sons mais bonitos produzidos pela natureza”.



Não é só o início de um namoro que se comemora no dia 29 de julho, para mim. É como se fosse a Páscoa. Uma ressurreição, uma transformação que continua acontecendo. A cada dia, em ritmo de descobertas. Assim é estar com Marcele. Assim é, principalmente, cuidar de Marcele. Fazê-la feliz significa realização e felicidade.
Há dois anos, estávamos em uma varanda na Praça General Osório, bebendo (mais eu do que ela) duas taças de vinho. Ontem à noite a tal varanda estava lotada, escolhi outra (fui no good-old fashioned Belmonte, recém-inaugurado ali perto) com vista para ela. E tomamos duas taças de vinho (acho que foi um pouco mais) no romper da meia-noite, na rota interminável das horas, dos dias, meses e anos. Nós precisávamos estar ali na Praça General Osório – curioso é que na época do primeiro encontro nem imaginávamos que ela fosse morar tão ali perto.
Já são dois anos. Às vezes parece pouco, às vezes parece muito. Noites mal-dormidas, viagens, brigas, alguns porres de vinho, outros (só meus) de uísque. Um grande problema de saúde (a tal da hérnia de disco que continua me causando dores), e a companhia dela o tempo todo, ao meu lado – talvez isso tenha sido o momento em que ficou decidido que Marcele estaria comigo para sempre. Os dias e meses deitado, de dieta, ela indo à aula, trabalhando, mas sempre aparecendo para me fazer feliz. Guardo até hoje um bilhete que ela iria deixar, dizendo que não quis me acordar – não sei porquê guardo, vai ver quero me apegar àqueles dias para que eles não aconteçam de novo. Mas o principal motivo deve ser para lembrar de como ela ficou tão perto de mim naqueles dias ruins.
Vieram outros dias ruins: apartamento onde ela morava pegou fogo, ela passando alguns dias comigo. Os encontros na Praia de Botafogo, eu voltando do trabalho, ela chegando de Niterói.
E todos aqueles lugares (“there are places, i remember, all my life”), a saída do metrô, a tal varanda do Shenaningan’s, o Cinemark, o Zio Pepperoni, a Stravaganze, o mexicano da Cobal, os cinemas do Estação, o Barril 1800 (mais recentemente), a Boate Spin, o meu quarto em que a luz que vem de fora, que a gente nunca sabe se é da lua ou de uma luminária acesa pela saudade de alguém, faz desenhos passando através do vidro cheio de adesivos passados. Todos esses lugares, lugares do Rio de Janeiro, a cidade onde vivemos esse amor insano e incurável.
Há exatamente dois anos, as nossas vidas passaram a ser a nossa vida. Parabéns mais uma vez, meu amor.

20 julho, 2004

As listas de Paraty

Sei que tem dez dias que cheguei de lá da FLIP, mas ainda tá em tempo de fazer as listas:
As 10 melhores coisas de Paraty
1- Estar com Marcele o tempo todo
2- O escritor angolano José Eduardo Agualusa
3- A oficina de texto do Milton Hatoum
4- O restaurante Capitão Pizza e seus vinhos em conta
5- O restaurante Arpoador e seu atendimento excelente
6- A tenda dos autores e a ponte sobre o Rio
7- Alexandre Inagaki e Suzi Hong
8- Jamil Damous e Zezé
9- A água do mar alagando a praça
10- As ilhas do Amyr Klynk, o latifundiário dos mares

As 10 piores coisas
1- As longas e incompreensíveis esperas por um prato nos restaurantes
2- Todo e qualquer restaurante coloca um cara para cantar só para cobrar cinco ou dez reais a mais
3- Às vezes o restaurante está vazio, você chega e o cara levanta para ir cantar só para cobrar cinco ou dez reais a mais
4- O restaurante Corto Maltese: espera de 1h50min por uma lasanha ruim de R$ 25
5- A busca pelas celebridades (Chico Buarque só deveria falar em público no Maracanã, e não numa cidade pequena, onde se sabe que haverá tumulto e exclusão.
6- As ruas de pedra, fatais para quem tem hérnia de disco
7- A enorme quantidade de cachorros pelas ruas
8- Os preços extorsivos do vinho
9- O Caetano Veloso
10- O ronco que me expulsou do albergue

Cenas rápidas

Amor é como um vulto: uma cena muito rápida dá para perceber que existe algo além, algo maior. Um sopro, um piscar de olhos, a mão encostada junto ao corpo de dedos separados ou dedos juntos, o jeito com que o cabelo pára, meio emaranhado, o sorriso na hora certa. Essas pequenas cenas fazem com que o todo seja vislumbrado, que a vida ganhe um sedutor estranhamento, que a gente entenda que vai mesmo fugir do medo da morte usando o enorme sentimento como grande e infalível arma.
O amor é um grande espírito.
Outro dia, em uma mesa de Paraty, um amigo disse que sofreu uma paixão repentina por uma namorada, por uma simples cena: a garota falando com alguém ao telefone.
Eu também tenho uma cena dessas na memória.
Em Paraty, superestimei, como já disse a muitos, minha capacidade de ser jovem. Sim, achei que eu poderia ficar em um albergue, numa boa, com Marcele. O primeiro erro foi achar que os quartos não ficariam separados. Minto: o primeiro erro foi ter demorado a marcar a folga no jornal para eu poder ir à festa. Se eu soubesse que era algo tão bom, teria marcado mesmo se eu não tivesse vaga na oficina do Milton Hatoum, que acabei fazendo.
Chego com Marcele, e descubro que vou dormir longe dela - pelo menos na primeira noite. Me veio uma dor no coração. Primeiro, por ficar longe dela na hora de dormir, em uma viagem daquelas. Depois, por ela. Daí entendi que negócio é esse de amor. É doer mesmo quando o outro nem sente tanta dor assim.
Mas tudo bem. Tomei um porre de vinho draculesco na primeira noite, cheguei tão bêbado que a dor foi anestesiado. Me despedi do meu amor, e fui dormir na cama de casal que eu tinha ocupado - incrível, isso: Marcele ocupando um beliche que poderia ser dado a outra pessoa, e eu sozinho numa cama de casal.
Aí, no máximo duas horas depois que eu adormeço, podre de bëbado, começa o horror: um ronco jamais ouvido em toda a face da Terra, comparado ao rugir de mil demônios, ao tropel de um milhão de cavalos comandados por Belzebu. Acordei em pânico. Não podia ser humano.
Mas era. Tentei, junto a outros dois hóspedes do mesmo quarto, acordar o cara - em vão. Peguei cobertas e travesseiro e fui para o sofá da sala. Um outro, soube depois, foi dormir em cima da mesa do café da manhã - teve que acordar para que as empregadas do albergue depositassem ali o nosso pão.
Uma conferência foi organizada, e se decidiu que o roncador dormiria em um quarto especial, onde dormia normalmente o filho do dono da pousada. Aproveitei e negociei com o cara de minha namorada dormir na cama de casal comigo. "Pergunta para os outros ocupantes do quarto", ele disse. Como ninguém tinha intimidade de dizer não, levei as coisas de Marcele para meu quarto.
À noite, o castigo pela imprudência: o roncador não saiu do quarto porra nenhuma. Ficou lá, sob a promessa de, "se eu roncar, podem me acordar que eu vou pro outro quarto", Ma che catzo, eu disse. Por que eu tenho que acordar para fazer isso, se o cara pode evitar tudo indo direto para um quarto só dele - um luxo, àquela altura?
Imediatamente comecei a telefonar para o pessoal do JB, para descobrir se havia vaga na pousada deles. O milagre aconteceu: rolou uma desistência. Onze da noite, guardei o grosso da bagagem no cofre do albergue, peguei as coisas mais necessárias, catei Marcele pelo meu braço (ela assistia a tudo quietinha, sem reclamar) e a levei para a rua.
Eram 23h30 em Paraty quando buscávamos um táxi pela rua. Achamos, perto do Centro Histórico. Em cinco minutos, chegamos à pousada. TV, frigobar, roupas de cama limpas, banheiro privativo, pizza e vinho pelo telefone. É, eu fiquei velho mesmo.
Fui tomar um banho longo, enquanto Marcele via TV e arrumava suas roupas.
Foi aí que o tal vulto, do qual eu falo no início do post, passou - nem tão rápido assim. Um vulto de um amor gigantesco, incalculável. No banho, com os ouvidos abafados pela água corrente, ouvi um rumor, uma melodia. Não deu para distinguir.
Fechei a torneira. Era a voz de Marcele.
- Marcele?
Ela não ouviu. Achei que estava ao telefone. Me enxuguei um pouco e abri a porta do banheiro devagar. Lá estava ela, cantando baixinho, dobrando lençóis e roupas, ao lado da TV ligada. Feliz, calma, satisfeita, iria dormir bem, comer uma pizza (ela ama pizzas), beber um pouco de vinho.
A música que ela cantava: Lobo Bobo, do Ronaldo Bôscoli. Nem gosto dessa música. Mas ver meu amor cantando, cantando porque estava feliz, e feliz porque, ora que diabos, eu consegui fazê-la feliz, tive um sentimento enorme, uma felicidade indescritível. Quem conhece Marcele pessoalmente, sabe que a voz dela é absurdamente doce. Imaginem então versos como "um chapeuzinho de maiô/ouviu buzina e não parou/mas lobo mau insiste/e faz cara de triste/mas chapeuzinho ouviu/os conselhos da vovó/de dizer não pra lobo, que com lobo não sai só".
Ali eu entendi que amor é um espírito, no sentido de nos acompanhar sempre, não como "encosto" mas como conforto. Amor é responsabilidade, amor é cuidar. Amor é quando a felicidade do outro é a sua.
Naquela noite, em Paraty, eu vi apenas um vulto. Mas deu para ver que há muito, muito além. Amor é memória que se renova a cada segundo.

Soul Survivor





Para quem ainda acha que a voz humana é a única tinta sonora para que se pinte a angústia, a alma e o sofrimento dos racionais que habitam este planeta, eu peço: corra agora até uma boa loja e tente adquirir o CD Soul Sessions da cantora britânica Joss Stone. Aos 17 anos, praticamente uma ninfeta, ela sofre como uma mulher de 35 tragando bitucas de Belmont em algum botequim enevoado na Bourbon Street. Não há mistério: em vez de comprar um CD do Robbie Willians ou coisa parecida, em algum momento de sua adolescência ela adquiriu um de Aretha Franklin, dos antigos, provavelmente ainda da época da Capitol.
Britney Spears e Christina Aguilera perderam uma concorrente. E quem gosta de música se deu muito bem. Soul Sessions, o primeiro dela, é uma overdose de soul e voz, de tristeza, de exaltação quase sexual, de afirmação da vida. A faixa que encerra o disco, For the love of you, dos Isley Brothers, é algo que faria Janis Joplin chamar o garçom para perguntar “quem é essa maluca que está ao microfone”.
Na nona faixa, ela paga seu tributo a Aretha, gravando All the king’s horses, uma canção que eu particularmente não conhecia. ]
Toda essa voz com uma base instrumental decente, sem frescuras eletrônicas, como diriam os sambistas mais empedernidos, “só pau e corda”. E a loura promete em setembro lançar o tal disco de composições próprias, que acabou sendo adiado para que se pudesse lançar esse ótimo Soul sessions com standards do gênero. Mas pelo gosto da moça, dá para esperar algo bom.
Joss Stone é o típico caso da propaganda boca-a-boca bem feita – vi uma coisa ou outra ali nos jornais, ouvi uma menção paralelamente ali na MTV, mas nada que me alertasse de que um furacão estava por vir. Um cara de bom gosto me deu a dica, comprei de olhos fechados, depois de perambular mais de um mês pelas boas lojas do ramo. “Tem, mas acabou”, era a resposta de sempre.É um discaço, imperdível. Se quiser saber mais, clique em http://www.s-curverecords.com/joss/, o site oficial da lourinha. Se tiver som e flash instalado, é melhor ainda.
E digo para vocês: se na época do surgimentos dos Strokes houve quem acreditasse que a bandinha do filho do Casablancas era a salvação do rock, não sei como ainda não decretaram que Joss Stone é a nova Acid Queen das nossas almas sobreviventes.