Tudo bem, admito, confesso, aliás. Subestimei o poder que aquelas microaranhas sempre possuíram de atazanar minha vida. Até hoje eu achava que ácaros eram seres ligados a um movimento de hipocondríacos (os primeiros estariam para os segundos como Osama Bin Laden para Bush, ou seja, o inimigo a ser vencido que sustenta a ideologia). Confesso que já achei o cúmulo dos absurdos alguém comprar um aparelho chamado Sterilair que – pasmem! – NEM BARULHO FAZ. Tudo a pretexto de destruir os ácaros, esses seres que, aumentados um milhão de vezes causam asco. Em tamanho natural, mal os vejo.
Mas o fato é que as microaranhas desta vez me ferraram de verde e amarelo. Tive uma reação alérgica inédita na minha vida, fato que me levou ao extremo: procurei ajuda médica. Poucas coisas me motivam menos a colocar os pés na rua do que a ida a uma clínica ou hospital. Mas, após DIAS sem respirar nem pensar direito, lá fui eu à Policlínica de Botafogo, pronto a descobrir a verdade.
E a verdade é que os ácaros do ar-condicionado do local onde trabalho me fazem mal, muito mal. “Se você limpa o seu, não é este o problema”. Eu limpo toda semana meu ar-condicionado, peça indispensável para sobrevivência neste verão simplesmente devastador. Adendo a este fato; faxinas semanais, com uso inclusive de pano úmido, em meu pequeno apê, fazem com que não seja possível uma criação de microaranhas por muito tempo.
Depois da consulta de praxe, bem longa, como devem ser as boas consultas médicas, veio a pior parte: fazer uma radiografia dos “seios da face”, para verificar o septo e a presença de sinusite.
O departamento de radiografia de uma policlínica é um local onde, no mínimo, já deveriam ter pensado em criar um reality-show. Faixas etárias, classes sociais e doenças diferentes são fatores tão determinantes que na minha opinião justificaria a eliminação de um de nós ali naquela sala uma vez por semana às terças-feiras. Um cara de meia-idade, grande e corpulento sem ser gordo, uma mãe jovem, uma moreninha meio patrícia ao celular, um coroa que tossia horrores (mais do que eu, ou seja, muito horrores), duas coroas italianas, um gordão meio boiola e um cara mais ou menos da minha idade. O mais engraçado: até um colega de profissão e de jornal passou por lá, o cara da seção Informática.
Não, eu não falei com ele nem chamei sua atenção. Acontece que eu estava sem óculos, e apesar do cara ser inconfundível (todo careca, óculos e boné), a coincidência era grande demais para ser verdade. Catzo, que eu saiba a sala de espera da Radiologia da Policlínica de Botafogo não é o Lamas para eu achar natural encontrar conhecido. Quantas vezes o cara vai lá por semana. E eu? Não, me recusei a falar. Não devia ser o colega.
Mas ele foi embora logo, e fiquei ali uma hora inteira, talvez até uma hora e dez minutos, esperando minha vez de ser chamado, em meio a diversos testes psicológicos involuntários. A começar pelo próprio comportamento dos técnicos de radiografia – do tipo, “ei, aqui dentro sou eu que mando”, ou “quem são esses caras aí esperando?”, entre eles. O pior é que estão certos – lá, a bola está com eles.
Daí o ritual de chamar os pacientes ser esse: você entrega o pedido na recepção que fica 10 metros antes, e segue para a sala de espera sem nada. Vão chamar seu nome – eu tenho certeza de que eles fazem isso só para que a gente saiba que entre o quiosque da recepção e a sala de espera tem uma ligação que nós mortais não vemos, por isso fica na sua, rapaz. Ou é paranóia demais minha?
Enquanto espero, ouço só as vozes dos técnicos. “Respira”, “levanta a cabeça”, “coloca o braço aqui”, “Não respira”, “Agora vira”, diversas ordens que poderiam indicar efetivamente qualquer coisa, até uma aula de aeróbica dentro daquele recinto.
Chega a minha vez, vem a loura de branco dizendo só meu primeiro nome. Tento acompanhar e ser natural. Mas é difícil ser natural quando se pensa: “Por que diabos a sala de raio X tem um milhão de avisos de perigo, diversas proteções para os técnicos, luz vermelha de aviso, etc, e MESMO ASSIM NÓS FAZEMOS O EXAME DE RAIOS X?”
Sério, por que diabos só com o doente é que não acontece nada? Me xinguem de ignorante, de leigo, mas, catzo, será que só dentro daquele pequeno espaço onde fiquei de queixo para cima é que não pinga a tal radioatividade?
Exame encerrado, sigo para a sala esperar a revelação. O coroa está tossindo isolado dos outros, sentado em uma escada. Deve ter pensado, “Não quero passar tuberculose para os outros”. Me dá arrepios a idéia. A mãe está levando o garotinho para outro andar, enquanto ele berra seguidamente, umas oito ou nove vezes a frase “Já disse que não quero”. Ele uns quatro anos, tempo menor do que aquele que precisarei para parar de ouvir “Já disse que não quero” na minha cabeça.
As coroas italianas parlam como papagaios, uma delas com o braço na tipóia. Meno male.
A rotina é quebrada de forma magistral. Um parêntese: Sim, cheguei a pensar no que aconteceria se caísse um meteoro na Terra que isolasse do resto do mundo a sala de radiografia da Policlínica de Botafogo. Iríamos todos nos apresentar (“Sim, lembra de mim, cheguei aqui tossindo até as tripas”, eu iria dizer, “Oh, eu só vim fazer uma tomografia, tenho um carcinoma, acho que não vou perturbar vocês muito tempo”, responderia algum outro paciente que eu não vi), imaginar formas de sobreviver, talvez quebrar a ressonância magnética para fazer lenha. Claro, na hora do canibalismo, o garotinho iria ser comido primeiro. Baby-beef.
Mas voltando à quebra da rotina: volta a loura de branco e me diz, com imponência: “Oi. Você precisa voltar. Temos de fazer de novo. Não ficou bom”.
Suprema humilhação! O único incompetente a “não ficar bom”. O que os outros iriam pensar? Até a criança de uns cinco anos fez o exame sem precisar de repetição! Sou alvo de olhares de reprovação, e se não fosse o barulho da minha própria respiração eu poderia jurar ter ouvido um “tsk, tsk”. Derrotado, sigo para a sala fazer novo exame, desta vez com sucesso. Tudo para, dali a quatro minutos, ter a experiência nada agradável de, pela primeira vez, ver meu próprio crânio. Sim, é desagradável olhar uma imagem e pensar “um dia eu serei assim”, principalmente quando o que você está olhando não é a foto do presidente do Santander. Ver a própria caveira é um negócio esquisito. Deveria ser proibido.
Só sei que a minha caveira contou para a médica que eu tenho desvio acentuado do septo nasal e que estou com uma grave inflamação nos cornetos.
É, cornetos mesmo. E sem gracinhas pro meu lado.