Marcello chorou
Fellini e Mastroianni: dois gênios que se foram
Quando Fellini morreu – há exatos dez anos e quatro dias – a primeira pessoa em quem pensei foi em seu amigo Marcello Mastroianni, na minha opinião,disparado o maior ator de todos os tempos. E, de forma isenta, posso acrescentar, sem boiolices, que era insuperável em beleza física também. Mastroianni, no entanto, parecia colocar acima de todas as qualidades a expressão impagável de Marcello Mastroianni, que aparece tanto na pele de seu personagem Marcello em “La Dolce Vita”. A expressão de estupefação, de intrigado, que é para mim uma marca da dupla Mastroianni-Fellini.
Pois veio o Jornal Nacional da noite daquele 31de outubro de 1993, eu com meus 25 anos mas já tendo visto “Amarcord” e “Noites de Cabíria” (meus dois favoritos) além de “Oito e meio”, que eu vi mas tenho que ver mais umas cinco vezes para poder entender (eu era louro quando eu tinha mais cabelo).
“Morreu hoje o cineasta Federico Fellini, etc, etc”. Vai aparecendo imagem do velório, feito na Cinecitá, em um ambiente que certamente seria aquele em que Fellini filmaria seu próprio velório – se é que isso é possível, se é que isso não aconteceu. Ao fundo, o céu pintado utilizado por ele em “Entrevista”. Câmera vai fechando em Mastroianni, locução em off registra a presença do eterno amigo de Federico. E Mastroianni (que também já se foi) estava com o rosto contorcido de dor e choro pela perda realmente irreparável, inestimável, para a humanidade e para as pessoas de bem. Pensei no tanto de tempo que os dois estiveram juntos, no quanto de eternidade haviam produzido com seus filmes que serão vistos daqui a uns setenta, oitenta anos. Talvez não cem. O mundo está ficando muito diferente do futuro desejado pelos filmes de Fellini – e só quem viu “Amarcord” pode entender isso.
Vi há uns oito meses “Amarcord” no cinema, com Marcele. Passou no Estação Paissandu, ali no Flamengo. É um choque sair da cidade de Fellini para o Rio de Rosinha, por isso que me incomoda tanto até hoje quando se vão pessoas como Fellini e ficam sujeitos meio belicosos andando por aí.
Se eu pudesse me atrever a definir “Amarcord” (não tenho suficiente formação intelectual para tal feito), eu diria que é o filme das duas horas finais de uma vida. Não tem aquela lenda de que nos minutos finais toda sua vida passa diante de seus olhos? Aliás, nem acho que seja lenda, mas vá lá. Eu creio que Fellini, de alguma forma foi mágico o suficiente (ora, não era ele quem dizia que se não tivesse virado diretor de cinema gostaria de ter sido mágico?) para ”filmar” as visões derradeiras dos olhos de um moribundo apaixonado por sua cidade natal, uma cidade que ele nunca mais veria. Talvez o sentimento que Orson Welles mostra em “Cidadão Kane”com Rosebud, aquela sensação de perda, porque afinal de contas não são só os lugares que ficam para trás – também se vão os momentos. Também se vão as Gradiscas, lindas princesas que se casam em cerimônias inesquecíveis ao ar livre, regadas de vinho. Também se vai o pavão que se abre em meio à neve. E o cinema, do qual todos saem correndo, deixando Gary Cooper para trás na telona para ver a vida real – “Venham todos, está nevando”.
“Amarcord” parece ser um filme sem roteiro, sem história, sem efeitos especiais, mas na verdade não conheço nenhum filme que tenha esses três elementos que chegue ao nível de hipnose e encantamento produzido pela obra-prima de Fellini. A cena em que os moradores da pequena cidade, em um barquinho, vão ao alto mar à noite para ver a passagem do gigantesco transatlântico é algo que parece definitivamente saído de um sonho. E tem a simplicidade das coisas eternas.
Sim, faz dez anos que Fellini se foi. Me lembro de uma de suas últimas entrevistas, no qual ele diz uma frase emblemática: “Eu me abandonei”.
E no dia 31 de outubro ele abandonaria todos nós, deixando o mundo um pouco mais sem graça, sem poder – como registrou brilhantemente Arnaldo Jabor, esse sim, com embasamento intelectual – esperar por mais um filme de Fellini, que fazia da vida real uma vida mais simples, um cinema eterno, inesquecível.
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