19 outubro, 2003

Vinícius em prelúdio


Dois gênios, Vinícius e Toquinho



Neste dia 19 de outubro, em que se comemoram os 90 anos de nascimento de Vinícius de Moraes (com E, por favor), a sensação que se tem é a de que estamos celebrando não só a memória de um excepcional poeta e compositor – estamos celebrando, sim, a memória de um Rio de Janeiro que já não existe, a não ser na forma de altivez. Como costuma dizer um colunista esportivo alternativo que conheço, o Rio de Janeiro, malgrado as críticas dos neo-desenvolvimentistas de outros estados, ainda é uma grande world class city, e o fato de Vinícius ter aqui vivido e por esta cidade se apaixonado é um sintoma fortíssimo disso. Não é à toa que em alguns rankings a canção Garota de Ipanema é considerada a segunda mais tocada em rádios de todo o mundo – a primeira, definitiva dos rankings, é Yesterday, dos Beatles, que se não me engano lidera também o ranking de músicas com mais versões diferentes.
Um ranking divulgado recentemente nos EUA indica que Garota de Ipanema toca uma vez a cada quinze segundos em território americano. Ou seja, em um ano a música é executada mais de cinco milhões de vezes por lá.
Hoje, letra e música, não só de Garota de Ipanema como de vários outros sucessos do poetinha parecem coisa do século retrasado, é de um Rio que não existe mais, fisica e metafisicamente falando. As pessoas estão diferentes, o espaço urbano está diferente demais. Mal há tempo para suspirar coisas como ‘Ah, porque estou tão sozinho`, até porque no Rio de Janeiro hoje em dia é muito difícil ir a qualquer lugar sem pegar uma fila gigantesca – ou mesmo sentar em algum lugar, pedir um chope ou uísque sem ser avisado pelo garçom de que “não pode só beber, tem que comer”. Enfim, a vida mudou.
Vinícius tinha um talento raro para colocar a Amizade em um patamar quase inatingível – diria quase porque o poetinha, apesar de adorar os amigos, era muito emotivo e isso acabava entrando nos relacionamentos. Um episódio narrado por Baden Powell no programa da série Ensaio (TV Cultura) mostra como Vinícius tinha um zêlo pelos amigos que extrapolava a mera dedicação. Conta Baden que levou certo dia a obra-prima Samba em prelúdio (uma das mais lindas canções de todos os tempos) à casa de Vinícius para que ele colocasse letra – o que acabou acontecendo.
Os dois, porém, tomaram lá “uma garrafa de uísque ou outra”, e passaram a noite tocando, conversando sobre a vida, até que quase no final da maratona (muitos baldes de gelo e bitucas de cigarro depois), Baden disse, “compadre, vamos fazer logo essa música”. Sério, Vinícius pôs o uísque de lado e disse, “olha, compadre, tenho que lhe dizer uma coisa muito chata. Mas isso que você tocou pra mim é Chopin”.
Baden ficou magoado na hora, reclamou, disse que não era Chopin coisa nenhuma, etc. Não chegaram a discutir ou brigar, segundo conta, mas o clima ficou meio chato. Vinícius insistia, Baden negava, de fato Samba em prelúdio não tinha nada de Chopin, e estava só esperando para ter tudo de Vinícius. Até que, conta o igualmente saudodo Baden, Vinícius decide chamar a esposa (nota minha: acredito que a Maria Proença), que “entende tudo de Chopin”.
Baden se aborrece, e “toca a real”:
- Meu compadre, não chama sua senhora não, já é de manhã, ela vai acordar, dar de cara com isso aqui, cigarro, uísque na mesa....
Vinícius, porém, foi irredutível, e veio lá sua sonolenta esposa ouvir a linda “Samba em Prelúdio”e obviamente deu um esporro no marido, e como crítica bem fundamentada, disse que aquilo não tinha nada de Chopin. Vinícius se convenceu de vez de que daquela vez não precisava proteger seu amigo Baden da acusação de um plágio, relaxou e soltou em poucas horas a letra que conhecemos hoje de Samba em prelúdio:

Samba em prelúdio
Vinicius de Moraes / Baden Powell
Eu sem você
Não tenho porquê
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar

Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

Ah, que saudade
Que vontade de ver renascer nossa vida
Volta, querida
Os meus braços precisam dos teus
Teus abraços precisam dos meus
Estou tão sozinho
Tenho os olhos cansados de olhar para o além
Vem ver a vida
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém
(cont.)