07 setembro, 2003

B.B. King



O mestre B.B.King e sua guitarra Lucille

Eu dormia (às vezes acontece de eu ter algum sono no final da tarde) enquanto Marcele via alguma coisa na TV, e de repente acordei e falei do mesmo assunto, algo que me deixou ofendido nos meus princípios: uma seção de CDs em O Globo colocava, lado a lado, os novos CDs de B.B.King e de LS Jack (é doloroso escrever esses dois nomes na mesma frase). Até aí tudo bem. Mas senti horror quando vi que os dois CDs recebiam a mesma avaliação, dois pontos. E várias vezes durante a semana eu ainda acordaria pensando no assunto.
No texto-crítica, do qual fiz questão de esquecer o autor, algumas cagadas de regra e maldades extremas como “um monte de standards” e a classificação da balada “What a wonderful world” como “manjada” ou “esgotada”, não me lembro.
Fiquei pensando que Blues Boy King já tem mais de 80 anos e em pouco tempo não estará mais entre nós, não poderá subir a um palco e dizer “let’s have a good time”, e disparar canções extraordinariamente pungentes como “Guess Who”, “Darling you know i love you”, “The thrill is gone”, “Five long years” e tantas outras. Um músico extraordinário, de talento na guitarra fora do comum e voz de cortar a alma ao meio – superada, talvez, pelo extraordinário Ray Charles, que é capaz de fazer hidrantes chorarem com “You don’t know me”.
Eu sempre acabo soando como saudosista ou rancoroso. Saudosista, porque parte da crítica e muitas pessoas realmente acreditam nessa estupidez de que a música tem prazo de validade – pessoas que apreciam música erudita ouvem compositores com datas de nascimento com duzentos anos de intervalo, mas os amantes do pop se sentem mal ouvindo o penúltimo CD de alguém.
E rancoroso, porque abandonei os bicos como DJ em função de não fazer o menor sucesso como tal – ou seja, por ter fracassado redondamente tentando faturar uns trocados na função, eu destilaria ironia contra os “donos do pedaço”, que muitas vezes fazem o papel de crítico e também de DJ.
A quem quiser acreditar, digo que não sou nem uma coisa nem outra. Apenas acredito em acompanhar a carreira de alguém como B.B.King, entender do que ele está falando, saber que, ora essa, “Guess who” embalou diversos porres quando eu dava com os cornos na porta em busca de companhia feminina (e que não foram poucos), respeitar isso e saber que, quando se tem talento verdadeiro como o de B.B.King, se pode gravar standards e foda-se.
Mas a crítica parece achar mais importante quem faz a “nova música”: os DJs. Gostaria muito de ver alguém tomar um pé na bunda de uma mulher e, ao chegar em casa, vendo na prateleira apenas dois CDs, “Guess who”, do B.B., e alguma merda qualquer de tecno, escolher o segundo. Queria ver um sujeito normal lembrar-se de que na primeira vez em que tocou em uma mulher, para dançar, estava tocando trance ou tecnodrum ou seja lá que merda for.
Chego a achar graça em críticos que vivem escrevendo sobre “longos e chatos solos de guitarra”. Atuam como se fossem os detentores dos novos padrões de comportamento. Não satisfeitos em determinar o que é bom e ruim ou ultrapassado em música, ainda indicam o que é “cool” em cinema, TV (geralmente, séries antigas e “cafonas”) e até culinária. Vá saber.
É claro que a crítica não poderia aprovar um sujeito de 80 anos que toca blues desde a década de 50, ainda mais regravando “What a wonderful world”. Que absurdo, quem vai ouvir isso? Pois bem, eu vou ouvir. Enquanto B.B.King for vivo, e enquanto eu for vivo e tiver dez CDs (pretendo comprar o novo assim que voltar a sair de casa) do homem. De B.B.King eu sempre me lembrarei – é como se fosse fosfato para a alma. Ao passo que os críticos de hoje já não lembram mais, por exemplo, nem do Cake.