Arte do encontro (cont.)
Cenas como essa, descritas pelo já falecido (e não menos extraordinário) Baden Powell, me dizem muito sobre as amizades da época, sobre o prazer de um passar a noite enchendo a cara com o outro, sobre a falta absoluta de PRESSA. Não parecia haver uma felicidade pronta, modelada, já desenhada, faltando apenas ser buscada à custa de competições e MBAs da vida. Havia, claro, a luta pela sobrevivência, mas de vez em quando se fazia uma pausa para o encontro (é dele a frase “a vida é a arte do encontro”), para um pouco de amizade, para um pouco de amor – ou muito. E até para dizer que o amigo está vacilando, que o amigo está plagiando Chopin. Vinícius costumava dizer que “nada é tão bom para a saúde do que um amor correspondido” – sem dúvida, ele que casou oito vezes pôde ser um exemplo de boa saúde apesar da nicotina e do álcool em doses industriais.
Sua última mulher, Gilda Mattoso, está para relançar (esta semana) uma preciosidade – gravações que foram colocadas, aqui no Brasil, em um disco chamado “O Poeta e o Violão”, onde ele e Toquinho tocam, conversam e dedicam músicas aos amigos (Chico Buarque, João Gilberto, Tom Jobim, Dorival Caymmi – de quem tocam ‘Dora`). Foi uma gravação feita para o mercado italiano, onde Vinícius canta até a clássica música americana “Nature Boy”.
Deste disco, do qual tenho muita saudade, curto muito a sequencia “Berimbau/Consolação” e a incrivelmente linda “O velho e a flor”. Tem também “Rosa desfolhada”, espetacular – “Tento compor/o nosso amor/dentro da tua ausência/toda loucura/todo martírio/de uma paixão imensa”.
Vininha, como era chamado, foi o cara que rachou a MPB no meio: antes dele, os caras eram cornos, traídos, abandonados, nas letras das músicas – estilo “Último desejo”, de Noel Rosa. Depois dele, o homem passou a cortejar mais a mulher para que ela ficasse, passou a prometer mais (“Eu sei que vou te amar”, “Por toda a minha vida”, etc).
Botafoguense convicto (como seu amigo Paulo Mendes Campos), homenageia a Seleção campeã de 1970 na abertura de seu histórico show em Buenos Aires, ao lado de Toquinho e Maria Creusa (excelente cantora): os três abrem cantando “A taça do mundo é nossa” (marcinha de 1958), e depois Vinícius manda para os argentinos: “jo sei que voces hincharon mucho por nosotros”, já sacaneando, entendendo que os portenhos, principalmente os portenhos, provavelmente secaram o Brasil a Copa inteira.
Enfim, Vinícius de Moraes, poeta tão diversificado (é incrível o cataléptico poema “Balada do Enterrado Vivo”, procurem para ler), tem só uma característica presente em toda a sua obra: a singeleza. E uma singeleza que só o Rio tinha. Ou ainda tem. “Ser carioca é ter como programa não tê-lo”, definia o poetinha, que tinha lá seu quê de baiano, no tempo em que baianitude não tinha nada ver com blocos de axé. Contava Paulo Mendes Campos que o poeta marcara um encontro com o grande Antonio Maria, já se passara uma hora e nada de aparecer. Maria, meio cabreiro, telefonou e reclamou.
- Ô poetinha, estou te esperando há uma hora!
- Ô, amigo Maria. Você me desculpe, não pude sair antes porque entrou ladrãozinho aqui em casa.....
Assim era Vinícius, assim era o Rio de Janeiro - que, apesar das Rosinhas e Garotinhos, ainda tem um Vinícius de Moraes cujo tempo é quando. Ou eterno.
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