31 janeiro, 2004

Motherland
Era uma noite violentamente estrelada de janeiro, eu estava à beira de uma piscina azul-lusco-fusco em Penedo, sob a embriaguez emotiva do vinho, aquela embriaguez que ora é Dostoiéviski, ora é Cortázar. Conversava com um amigo hondurenho, esperando por Marcele, que insistia em ficar dentro do quarto da pousada lendo 1984 de George Orwell. A mulher do hondurenho cuidava do filho deles.
Marcele abriu a porta suavemente, vi de longe, e veio caminhando em um silêncio ensurdecedor, quando começaram os primeiros acordes, o bandoneon, a voz melodiosa, tristíssima. Natalie Merchant estava cantando, nada menos que aquela que seguramente está entre as dez músicas mais lindas de todos os tempos: "Motherland" (ver letra abaixo).
A voz parece suplicar carinho, proteção para o horror de saber que a vida é verdadeira (como no Terceiro Fausto de Pessoa que eu lembrava em uma conversa outro dia), a voz de Natalie é como a de alguém que pede que ao se apagar a luz, deite-se ao lado, implorando por favor. Mas com desesperança, não com desespero.
Naquela noite, Penedo tinha algo que pairava.
Era o início de janeiro, um ano louco, das maiores transformações e adaptações que já tive. Um ano ruim, de dor. Mas eu diria que um ano necessário.
Pois em janeiro, no dia 21 de janeiro, entrei em uma loja e comprei "Motherland" de presente para a mulher do meu irmão, que fazia aniversário naquele dia. No dia seguinte, completaram-se 20 anos desde que perdi meu pai. Sei lá, só sei que a vida parece ter tanto cadência quanto continuidade nessas horas - pois foi eu dar "Motherland" que exatamente naquele dia dos 20 anos que o casal confirmou a suspeita de gravidez. E no dia seguinte, uma sexta pré-pescoção, já no dia 23 de janeiro, que recebi a notícia de que teria um sobrinho. Um ano depois daquela cena em Penedo, daquele céu e daquilo que pairava.
Espero que em breve mais "Motherland" siga pairando no ar. Essas coisas me dão um sentido, mesmo que alguém mais cético me diga a expressão "mera coincidência". De qualquer maneira, "Motherland" é um presente ideal para quem vai saber que será mãe. Keep me safe, lullaby me to sleep.

Where in the hell can you go far from the things that you know
Far from the sprawl of concrete that keeps crawling its way about 1,000 miles a day?
Take one last look behind, commit this to memory and mind.
Don't miss this wasteland, this terrible place.
When you leave keep your heart off your sleeve.

Motherland cradle me, close my eyes, lullaby me to sleep.
Keep me safe, lie with me, stay beside me don't go.
Don't you go.
Oh, my five & dime queen tell me what have you seen?
The lust and the avarice, the bottomless, cavernous greed, is that what you see?

Motherland cradle me, close my eyes, lullaby me to sleep.
Keep me safe, lie with me, stay beside me don't go.

It's your happiness I want most of all and for that I'd do anything at all, oh mercy me!
If you want the best of it or the most of all, if there's anything I can do at all.

Now come on shot gun bride what makes me envy your life?
Faceless, nameless, innocent, blameless and free, what's that like to be?

Motherland cradle me, close my eyes, lullaby me to sleep.
Keep me safe, lie with me, stay beside me don't go.
Don't go.