01 fevereiro, 2003

O "lifemovie"
A onda é criar expressões em inglês - ultimamente, mais do que nunca. Uma nota do Globo deste sábado dá uma idéia: o Helio de La Peña, irônico como poucos, comentando "para que batizar de 'fun floor' um andar, se temos a palavra em português que é 'playground?''. No próprio Globo, neguinho escreve "a festa vai ter área para chill out (vá lá o que se seja) e lounge com dubs, trance, acid, house-mix e "debê". Aí você pensa: enfim, "debê", uma palavra em português. Os caras iniciados e entendidos vão e te corrigem:debê é "drum and bass". Ah, bom. Eu, porém, sou mais da linha do engenheiro e historiador do rock Rodrigo Cobra: drum and bass para mim sempre foi Ginger Baker e Jack Bruce.
Mas, enfim, não é sobre xenofobia que quero escrever. Queria propor a criação de um termo: o lifemovie. Aplicar-se-ia a todos aqueles filmes aos quais alguém, em algum canto do planeta, pode se referir como "pô, é o filme da minha vida".
Por que pensei nisso? Porque esta semana, com Marcele, vi "Cinema Paradiso" pela segunda vez. Havia visto no cinema, o falecido Metro Boavista (um sinal de velhice é quando você já foi a pelo menos cinco cinemas extintos: Ópera, Rian, Veneza, Coral, Scala e Metro Boavista. E nem vou citar o Art-Copacabana), há 13 anos. Comprei-o em DVD na banca de jornal, mas é desses filmes que nos dão a náusea mais primitiva. A náusea suprema que o século 20 trouxe para a raça humana em definitivo, que é a de contemplar imagens passadas - até o início do século passado, isso não era possível para o ser humano, é só pensar nisso (só uns poucos reis renascentistas e mecenas gordinhas e peladas de Boticelli).
Em duas horas, o telespectador se depara com o horror de saber que a vida é verdadeira - um horror trazido de forma lírica, doce e extraordinária por Giuseppe Tornatore. Quando Totó, seu personagem principal, retorna à velha cidade após mais de 20 anos, todas as seqüencias são absurdamente comoventes, pungentes. "Eu pensei que eu iria ter saudade, pensei que eu sentir falta de algo, mas está tudo tão aqui, na minha frente, e no entanto não conheço ninguém", diz Totó a uma envelhecida mãe (que é mostrada linda no filme, no início).
Tal frase acontece depois do enterro do velho Alfredo, em que Totó estranha: o dono do cinema o chama de "senhor". Sim, ali ele tem um choque enorme - outro dos sinais de envelhecimento é a mudança de tratamento. Mas ele não poderia esperar aquilo do dono do cinema, que após o enterro vai ver a demolição - a prefeitura vai construir um estacionamento no local. É mais útil, com o excesso de carros. "E as pessoas já não iam mais, Totó. Tem a televisão, o videocassete, outras diversões, ninguém ia mais", diz o dono do cinema, uma frase que emendou na minha mente com a da mãe de Toto - "só há fantasmas".
"Cinema Paradiso" é sem dúvida um "lifemovie". O filme da minha vida, ainda digo, é "A Felicidade não se compra", de Frank Capra. Mas poderia ser "Cinema Paradiso", sem dúvida. Tornatore fez uma parábola doce e trágica sobre os efeitos colaterais do crescimento econômico e tecnológico - sim, um cinema, um lugar de magia, dando lugar a um estacionamento (como aqui dão lugar a igrejas pentecostais), porque afinal de contas nós temos o videocassete. Efeitos colaterais estes que talvez foram levados às últimas conseqüencias por Orwell em "1984", obra em que "big brother" não significa somente um bando de retardados trancados dentro de uma casa sem fazer nada.
Sim, "Cinema Paradiso" talvez seja a história da triste vitória da impessoalidade. Vai ver, por isso que eu gosto de botequim - ao invés de digitar senhas ou dar meu número de CPF, minha vida se resolve com um "pendura a conta, seu Joaquim".