24 julho, 2002

Os mini contos, de volta
Aqui ressuscita um post que havia morrido semana passada com as experiências do Gustavo. São os mini contos de Rosa Amanda Strausz que me mais me agradaram:
Tempo II
Tinha 16 anos no retrato sobre a mesinha e sessenta na poltrona à sua frente. Se ela chegasse só mais um pouquinho para a direita, ele poderia ver as duas imagens sobrepostas e tentar descobrir por que aquele beijo jamais havia acontecido.
Mas ela se levantou bruscamente e ofereceu um café. Ele aceitou, resignado, pensando que ser tarde demais era um destino como outro qualquer.
Jogos
Detestava bonecas, principalmente as lindas. A insistência dos pais acabou por acostumá-la com a perfeita beleza daquelas amigas hirtas, que tão precocemente a iniciaram no hábito da solidão.
O telefone
Quando o telefone tocou, já sabia que era ela reclamando da solidão. Fazia isso todos os dias, à mesma hora. Chamava cinco amigos pela manhã, três à tarde e um número variável à noite. Era a solitária mais acompanhada que já se conheceu e a que melhor soube tirar proveito dos males modernos.
Deus tem fome
Era um mundo como outro qualquer, mas sem pudores de ser macabro. Ali, a morte vivia forte e sã e era motivo para que todo dia lhe pagasse seu tributo. Células cerebrais destruídas pelo álcool, vestidos velhos, amores desfeitos, signos de decadência várias eram a cada ocaso depositados em urnas especiais e solenemente enterrados. Todo dia. Religiosamente, é claro. E assim cultivavam o deus voraz, eternamente alimentado de despojos. Como qualquer deus que se preze, aliás.
Ainda o verbo
Queria bradar: faça-se a luz, e que a luz se fizesse. Gritar bom-dia e que assim o fosse mesmo. Inútil. Sua boca era uma fonte que espirrava pássaros. Belos, mas indomáveis. Assim que sentiam o ar a sustentar-lhes o vôo, sumiam como raios, deixando atrás de si um rastro que impelia à repetição e mais nada.
Tempo III
Ganhou três gravuras chinesas com fundo vermelho. Uma borboleta ladeada por dois morcegos; um peixe e um dragão. Emoldurou o presente em laca e pendurou na sala, adivinhando significados místicos nos quadros e nas intenções de quem os deu.
Eram três ilustrações para rótulos de caixas de fósforo, descobriu anos depois. E ficou ainda mais encantada com a irrupção daquela beleza repentina. Desde esse dia, quando lhe perguntam o que querem dizer as gravuras, sorri misteriosa. De que adiantaria explicar a morte dos nossos pequenos deuses?