Desintoxicação da alma
A segunda-feira foi de limpeza. Além de andar de bicicleta, ainda comprei umas vitaminas, tomei, e ainda ataquei com chá de boldo. Além de frutas com fibra, tudo para desintoxicar o corpo. No final do dia, desliguei o telefone para ninguém me chamar para a peçonha - segunda-feira, para quem é profissional, sempre tem alguma programação hard - e fechei a porta do quarto, colocando, com som estéreo, A Era do Rádio (Radio Days) do Woody Allen, no VCR. E cheguei à terrível conclusão, dificílima de chegar, com um cineasta que tem "Zelig", "A Rosa Púrpura do Cairo" e "A última noite de Boris Grushenko" em seu currículo: "A Era do Rádio" é o melhor filme de Woody Allen, talvez o seu Amarcord. Ou não talvez, mas certamente o seu Amarcord.
"A Era do Rádio" é uma desintoxicação total da alma. Para começar, o filme inteiro é marcado por canções dos anos 30 e 40, entre elas algumas conhecidíssimas até hoje como "Begin the beguine", "Dancing int he dark" e "Night and day", se não me falha a memória, todas de Cole Porter. Isso dá uma atmosfera inigualável ao filme, já oprimindo o coração do telespectador em uma aura de saudosismo e melancolia que poucos filmes conseguem igualar. As imagens são quase todas oníricas, e parecem ter sido extraídas da memória de uma criança. Woody Allen teve a sutileza, por exemplo, de associar música a imagem, como por exemplo, dizer "a primeira vez em que ouvi essa música eu me lembro, pois aconteceu tal coisa,etc". Coisa que acontece quando criança, claro. Quando mais a gente tem tanta certeza de que está ouvindo uma música pela primeira vez?
A visão que Woody Allen tem dos parentes é espetacular - a tia solteirona, a avó que coloca espartilho, o tio maluco que adora peixes, o pai pseudo-fracassado, escondendo seu estado de penúria por trás de uma face de prosperidade, a mãe insatisfeita, ele próprio quando criança, e sua família reunida somente em torno da tristeza da morte de uma menininha em um poço (transmitida ao vivo pelo rádio) e na alegria do reveillon. Imagino que obviamente a maior parte da história é ficção, um pouco inspirada na realidade - mas imagino o quanto deve ter doído para Woody Allen escrever a cena final, em que os personagens principais do rádio - em um momento de extrema angústia, que é a passagem de ano - ficam se perguntando se serão lembrados no futuro.
Segue-se a narração de Woody, e o fecho de ouro, sutil, genial, arrasador, como só um grande filme pode trazer.
Taí. É uma questão para ser discutida. "A Era do Rádio" é ou não é o melhor filme de Woody Allen? "Zelig", "A Rosa Púrpura do Cairo" e "Manhattan", para mim, são os únicos que podem concorrer em termos de beleza, humor, lirismo e imagem.
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