27 março, 2002

Um segundo antes
Poucos conseguem se lembrar. Eu sempre pergunto, aliás, com uma curiosidade que no início parece meio mórbida. Mas é um momento único - eu mesmo esqueci vários. Mas não o primeiro.
Eu escrevo sobre o segundo antes do beijo - do primeiro beijo. Sim, algum amigo me conta, "fiquei (enfim, né?) com fulana", e eu acho legal, mas sempre me detenho nisso: o que você falou pra ela, diz aí, e o cara, o interlocutor, reproduz mais ou menos a conversa - até meio contrariado, às vezes. Mas eu interrompo, "Não, não é isso que eu quero saber".
É como se o momento antes do beijo fosse exatamente como aquele momento sagrado da comunhão, aquele em que o padre ergue o cálice para os céus e os fiéis se ajoelham, não podendo olhar e muito menos fotografar (sim, sei que aquele cálice tem nome, mas esqueci). A mente faz questão de apagar a última palavra.
Eu me lembro de que com uma namorada (ao lado da última, a mais importante) a minha última palavra antes do beijo foi, "ah, vai, não fica com medo". Calma, apesar de tudo ela não estava com medo de mim, e sim porque nós dois tínhamos acabado de ser assaltados, em uma praia, onde estávamos abraçados vendo o pôr-do-sol.
Até hoje eu fico pensando se não foi muita canalhice da minha parte abraçar uma menina com medo e dar um beijo nela. Não, foi totalmente sem querer, nada planejado. Pelo menos isso.
Nunca saberei direito o que dizer - perguntar "me dá um beijo" é algo que não passa pela minha cabeça. Um amigo me diz que fala, "não posso sair daqui hoje se eu não tiver um beijo seu". Parece dar certo. Enfim, dependendo da cara do freguês, é claro que qualquer imbecilidade pode ser falada - com certeza 99% das mulheres que eu conheço prefeririam beijar o gêmeo da casa dos artistas arrotando o Hino da Bandeira do que me dar um selinho depois que eu recitasse "Os Lusíadas", de Camões. Nada contra, questão de escolha, somos um país livre. Tudo bem que a gente faça altas cagadas com essa liberdade.
Só sei que, lembrando de Cinema Paradiso dia desses - e de sua cena simplesmente mortal da edição dos beijos - me toquei de que o resumo das nossas vidas é marcado por esses primeiros beijos que se tornam os primeiros de uma série. Ali, naquela escuridão de memória, onde ninguém consegue guardar a última palavra antes de mergulhar no abismo de dois, é que forjamos os nossos sonhos mais recorrentes, nossa bagagem para o infinito, nosso pulsar inconstante.
Mesmo naquele beijo em que a gente abre os olhos para ver nossa amada recusando a luz que um dia ela nos dará.