17 julho, 2005

16 de julho


Juvenal chega atrasado. O Brasil assim fica. Uruguay 2 a 1, Ghiggia herói.O gol lhe valeu um contrato com o Roma em 1953

Muitas coisas nos inviabilizaram como nação próspera e sem desigualdades, tais como a corrupção, o clima dos trópicos, a exploração externa, a xenofobia, a dívida com o G-8 e o Eurico Miranda. Mas sem dúvida alguma o dia 16 de julho sempre será lembrado como o dia em que deixamos para trás a chance de sermos um país próspero - por mais que tal tese tenha mais cara de lenda do que de realidade. Digamos que o 16 de julho seja um símbolo, o apogeu de uma ópera trágica e cômica: nossa inviabilidade.

Residem no antes, durante e depois dos 90 minutos alguns dos maiores traços da brasilidade: o otimismo injustificado, o desleixo do poder público (nossos jogadores só puderam "almoçar" sanduíches de queijo com presunto com água mineral, sentados em imundos colchonetes), o imaginário causado pelo medo (o tapa de Obdúlio Varela em Bigode, que segundo muita gente boa jamais existiu), a exploração política dos fatos e a cruficicação dos culpados - até morrer, em 2003, Barbosa repetiria a mesma frase:

- No Brasil, a pena máxima é de 30 anos. Eu já pago pelo meu crime há 50.

Há quem aposte: Brasil 1 x 2 Uruguai foi uma tragédia brasileira mais terrível que o Joelma ou que as guerras contra Solano López. Para nossa formação como país, foi um desastre. Um país campeão do mundo em sua arena talvez fosse um combustível a mais para os anos prósperos que se seguiram. As substituições de importações do incompreensivelmente saudoso JK não puderam preencher a lacuna na alma de quem acompanhou o episódio. Nós, de 30 anos ou mais, tivemos no mínimo um tio, ou o pai, como testemunhas daquele gigantesco silêncio.

Naquele 16 de julho, ainda tivemos o ciúme que guardaremos para sempre: por mais penta ou hexa que seja o Brasil, a vitória mais espetacular da história das Copas é sem dúvida alguma a do Uruguai. O escritor uruguaio Eduardo Galeano descreve desta forma o episódio, em seu excelente Futebol ao som e à sombra:

"Quando houve o gol de Ghiggia, explodiu o silêncio no Maracanã, o mais estrepitoso da história do futebol, e Ary Barroso, o músico autor de Aquarela do Brasil, decidiu naquele momento abandonar para sempre o ofício de locutor de futebol. Depois do apito final, os comentaristas brasileiros definiram a derrota como a maior tragédia da história do Brasil. Jules Rimet perambulava pelo campo, perdido, abraçado ao troféu que levava o seu nome:

- Fiquei sozinho, com a taça em meus braços, e sem saber o que fazer. Acabei por descobrir o capitão uruguaio, Obdulio Varela, e a entreguei quase às escondidas. Apertei-lhe a mão sem dizer nem uma palavra".

Galeano conta que Jules Rimet já tinha pronto no bolso um discurso para exaltar o Brasil campeão, o mesmo Brasil que levou o mundo ao delírio ao golear por 6 a 1 a Fúria Espanhola, ao som de Touradas em Madri, diante do autor, Braguinha, em lágrimas. O otimismo pré-jogo - o craque Zizinho assinou duas mil fotografias com a inscrição "Brasil Campeão" - me lembra os ciclos eleitorais, a sensação de "agora vai", a esperança que parece vencer o medo mas na verdade empata. Estamos sempre esperando. A palavra Quase é brasileiríssima - em inglês, é muito mais otimista e copo meio cheio o Almost do que nosso copo meio vazio Quase. Naquele dia 16 de julho foi quase. Faltavam só dez minutos quando Ghiggia se aproveitou de um momento de indecisão entre Bigode e Juvenal e chutou fraco entre Barbosa e a trave. O próprio Bigode - acusado por Juvenal de ser o culpado - já jogou a responsabilidade para Barbosa certa vez, dizendo que o chute foi tão fraco que ele deu as costas achando que o goleiro vascaíno iria pegar.

Na definição de Carlos Heitor Cony, "o Brasil ficou adulto sem querer". Boa, mas eu creio que ali nós perdemos o direito à infância, ao lúdico, sem necessariamente crescer por causa disso. Os personagens daquela tarde estão, quase todos, aos poucos, morrendo - tanto os do campo quanto os da arquibancada. Mas tenho dúvidas se com mais cinco ou seis gerações a derrota de 50 será esquecida. Gostaria de estar vivo em 2050 para ver seu centenário. Os netos serão entrevistados - talvez alguém revele o que certa vez revelou Tomás Soares da Silva, sem gravador ou testemunhas, a um repórter do jornal O Fluminense, uma cena jamais publicada. Depois de conversar pela enésima vez sobre a tragédia, Zizinho, que sempre vivia o inferno todo mês de julho, contou, em off e descontraidamente, que foi com mais dois jogadores ao vestiário uruguaio cumprimentar os campeões - fato já conhecido. O que ele nunca contou é que o vestiário estava repleto de seringas usadas, como se os celestes tivessem injetado algum aditivo antes do confronto.

Morto em 2002, Zizinho não poderá mais falar nem em off. Mas, mesmo que isto fosse revelado com provas ou confissões uruguaias, nada poderá nos dizer que país seríamos se naquela tarde de 1950, em um último cruzamento sobre a área de Maspoli, após a deixada de Zizinho, o atacante Ademir Menezes, o Queixada, tivesse chutado para dentro em vez de chutar para fora, como aconteceu. E talvez aí resida nossa maior dor diante desta e de outras tragédias nacionais: ainda não sabemos que país poderíamos ser.