Os melhores LPs da minha juventude
Truth, de Jeff Beck
Na opinião de quem realmente manja do assunto – como o dublê de engenheiro e colecionador industrial de rock Rodrigo Cobra – o álbum Truth é “o melhor disco de blues branco já produzido”. Ao ouvir aquela inesquecível e jamais repetida formação do Jeff Beck Group estilhaçando o caminho das almas em “Let me love you”, fica difícil duvidar. Também, era covardia: na guitarra, Jeff Beck, que apesar de confuso em sua discografia conhecia os caminhos das notas como poucos, um talento quase sobre-humano. Nos teclados hammonds, um sujeito chamado John Paul Jones, que dois anos depois ajudaria a fundar o Led Zeppelin. No piano, o desarvorado Nicky Hopkins, presente em nove entre dez discos dos anos 60 e 70. Na bateria, Mick Waller, sobre quem eu não tenho informação. E no baixo, ninguém menos que o atual guitarrista (atual desde 1975) dos Stones, o completamente alucinado Ronnie Wood, que dali sairia direto para os Faces.
Não podia dar outra coisa a não ser um disco extraordinário do primeiro ao último sulco. “Shaaapeeees/Of things before my eeeeeeeyes”, disparada por Rod Stewart, o ex-coveiro que tentava a vida cantando blues (mais tarde, como em “Maggie Mae”, talvez tentasse a vida jogando sinuca).
A primeira vez que ouvi essa obra-prima deve ter sido lá pelos idos de 1980. Meu irmão mais velho comprou, e eu primeiramente me limitei a ouvir a melodia de “Greensleeves”, para muitos a primeira música a ser aprendida ao violão – Jeff Beck abria o lado B do disco com ela, segundo ele próprio, “a lovely toon”. Apenas violão e uma sensação de paz quase lisérgica. Mas lembro de que eu tinha que levantar rápido e tirar a agulha do disco, porque mal acabava a candura de “Greesleeves” e já vinha de novo Rod Stewart (em “Rock My Plimsoul), antecedido pela furiosa multiplicação de nervos que ocorre sempre que Jeff Beck, Ronnie Wood e Mick Waller se encontravam no infinito. “Rock me all night long, you know, rock me baby, rock me all night long”, todas essas coisas meio edipianas de homem-mulher que se cantadas hoje por esses cinqüentões (ou sessentões) podem até soar ridículas (tanto que Rod passou a gravar Cole Porter, mais de acordo com sua idade – “I get no kick from champagne...”), mas para um imberbe em busca de afirmação, oh, sim, é tudo o que a gente precisa pelo menos por três minutos. E Rod e a guitarra de Jeff dialogavam da forma mais cafona e empedernida possível, mas adoravelmente cafona.
Bom, mas voltando a “Shapes of things”, ou melhor, a “Let me love you”, a segunda do lado A, que mostrava um baixista incrível – Ron Wood. “Mas não é o guitarrista dos Stones?”, perguntávamos. Era ele mesmo, em “Let me love you”, mostrando como se ia e como se voltava em uma linha de baixo, jogando o casaco em cima da poça para a dama Rod Stewart passar seca e sem se molhar, implorando para deixar amar, deixar amar. Segundo o próprio Jeff Beck, essa música é parceria dele com o Rod Stewart. Mas esse é o tipo de verdade que não costuma ser defendida com unhas e dentes por quem estava vivo em 1967.
Hoje a minha preferida do disco é essa terceira música, “Morning Dew”, regravada recentemente por Robert Plant (que lhe deu uma forma interessante e muito boa de ouvir) e colocada na trilha sonora de “The Bangers Sisters” (Doidas demais, com Susan Sarandon e Goldie Hawn). Vale a pena ouvir as duas versões – perto de Rod Stewart berrando “weel i heaaaarr a young man cryyyyy”, Plant parecerá “cool” e frio pela primeira vez. Mas será só impressão.
Eu já tinha ouvido o “Led Zeppelin 1”, disco que adoro até hoje, quando ouvi o “Truth” pela primeira vez. Adorava a versão do Led para “You shook me” (se não me falha a memória, do Willie Dixon), mas implicava com o duelo esquisito de voz/guitarra que eles faziam no final. Mas aí veio essa do “Truth”, anterior, mas com Rod Stewart destruindo, e a banda entrando toda de uma vez, bom, é algo a se ouvir com pelo menos um copo de vodka na mão. E você ainda estará no finalzinho da vodka (dá tempo de pegar mais uma dose) quando tambores de orquestra suaves e sussurros de coveiro rouco anunciarem a chegada de “Ol´ Man River”, música tradicional americana cantada até pelo mafioso Sinatra. Assim fechava um lado extraordinário de um disco idem.
Jimmy Page fazia uma pequena participação, não creditada totalmente. Quer dizer, eles gravaram uma espécie de “Bolero de Ravel” na guitarra, aquela embromação toda que Claude Lelouch empurrou goela abaixo da intelectualidade brasileira (que fique bem claro que eu acho o Bolero de Ravel uma grande merda), e creditaram a música ao Jimmy Page, coitado. Duvido que seja dele. De qualquer maneira, é apenas uma introdução até correta para o massacre que se segue: “Blues de luxe”, com um dos mais maravilhosos e imundos solos de piano da história do blues, um Nicky Hopkins martelando ensandecido o piano, indo até as notas extremas, tocando com uma paixão que faz falta na música em qualquer tempo, em qualquer época (a boa música sempre existirá, assim como sempre existiu e sempre existirá a música desapaixonada). Rod Stewart abusa nos vocais, “You don´t know not much about love, baby/I am sitting, sitting, sitting in my lonely room, tears rolling down my eyes”, e ao terminar o solo de piano, Jeff Beck parece “pedir licença”: faz uma espécie de vinheta com a guitarra e envereda putaquepariu a baixo (e a cima) com um solo de deixar qualquer Yngwie Malmsteen parecendo guitarrista de churrascaria. Blues de Luxe é gravada ao vivo, e inserida sabe-se lá com que critério nessa verdadeira colcha de (maravilhosos) retalhos que é o “Truth”. A vaidade enorme de Jeff (vaidade, aliás, famosa e reconhecida) provavelmente fez ele se emputecer após o solo de Hopkins e sair destruindo. Depois de ouvir “Blues de Luxe”, até mesmo a deliciosa regravação de outro clássico de Willie Dixon, “I ain´t superstitious”, fica levemente sem sal – é preciso ouvir em separado, para entender que também é espetacular.
Ouvir esse disco me dá a impressão de que o encontro de pessoas depende ainda do tempo em que acontece – neguinho acredita em astrologia para as estrelas, mas eu defenderia uma astrologia para pessoas. Ou seja, ao invés de falar de Saturno entrar em linha com Plutão, pensar, “de quando Jeff Beck se alinhou com Ron Wood, que estava na casa de John Paul Jones, que estava no signo de Rod Stewart”. Um encontro não é apenas algo ensaiado, composto, produzido, meticuloso, como um “Tribalistas” (sem querer julgar o mérito da obra). Tem algo de mágico – talvez os encontros musicais mais fortuitos sejam aqueles cobertos pelo manto do “Nunca Mais”. Nunca mais os Rolling Stones e Bob Dylan cantarão juntos embaixo do Cristo Redentor, sim, por isso aquele momento foi tão forte. Jeff Beck ainda produziria o “Ola”, mas a formação era diferente. Com certeza, porém, o vaidoso e polêmico guitarrista sabia que estava participando de um momento único, como a concepção de um filho.
Ah, bom, ou então, sei lá, se eu perguntar isso sobre o “Truth” para ele um dia, ele me responda, “não sei, eu tava de porre” – mas quantos filhos não foram feitos com os pais meio de porre?
Enfim, do primeiro ao último segundo, o “Truth” é uma obra perfeita, que carrego comigo praticamente desde os 12 anos. E olhem que, infelizmente, em nossas vidas, é difícil podermos dizer que temos algo que não muda desde os 12 anos – uma idade em que tudo começa a mudar e a gente mal sabe se a verdade também muda.
“Truth” não mudou. Felizmente.
2 Comments:
Olá!
Lembro muito bem quando ouvia este sonzão do Jeff Beck. Sempre fui vidrado no rítmo destes caras! Eram, são & serão eternizados por estes acordes que fazem muitíssimo bem à alma do ouvido. Parabéns pelo bom gosto!
Serinaldo Ferreira de Andrade
Rockeiro é tudo igual sem dismilinguição de espécies ou raças de costumes.
Falô!
Olá!
Lembro muito bem quando ouvia este sonzão do Jeff Beck. Sempre fui vidrado no rítmo destes caras! Eram, são & serão eternizados por estes acordes que fazem muitíssimo bem à alma do ouvido. Parabéns pelo bom gosto!
Serinaldo Ferreira de Andrade
Rockeiro é tudo igual sem dismilinguição de espécies ou raças de costumes.
Falô!
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