24 outubro, 2002

A tragédia nostra
Vi na terça-feira o Ônibus 174, documentário sobre aquelas horas de terror que o Brasil inteiro viveu no dia 12 de junho de 2000. Um daqueles dias em que cada um sabe onde estava na hora, como no antigo filme "Onde você estava quando as luzes se apagaram?", este relatando o famoso black-out de NY nos anos 50. Bom, perto dos Osamas, um black-out é fichinha. E perto de horas acompanhando um seqüestro ao vivo, um black-out fica até parecendo a "hora do parabéns" em festinha de criança.
O cineasta José Padilha foi extremamente feliz na divisão do filme entre vítimas, poder público, imprensa e parentes e amigos do matador, o Sandro do Nascimento. Em todo momento, o que é destacado é nada mais que a tragédia social de um país em frangalhos, destruído, fracassado, inviável. Desde o dia-a-dia no bairro Boavista, de São Gonçalo, até a convivência nas carceragens imundas (as imagens destas são chocantes e fazem mal ao estômago), Padilha mostra todos os ingredientes para a criação de monstros como Sandro do Nascimento. Sem pena dele, mas ao mesmo tempo mostrando o quanto cada um contribui para que Sandros existam: corrupção, política, descaso individual, egocentrismo, tudo isso se somando para a formação de uma sociedade cuja única perspectiva é um futuro Mad Max. E, claro, 12 milhões de desempregados (cortesia de FHC) não melhoram nem um pouco esse quadro.
"Ônibus 174" é sombrio, mas não traz a escuridão que, por exemplo, traz o excelente "Notícias de uma guerra particular". Enquanto "Notícias..." é sombrio, dantesco, terminal, "Ônibus 174" ainda deposita valores bons nos seres humanos, mesmo naqueles que estão quase deixando de sê-lo. A última cena do filme parece traduzir isso que José Padilha quis mostrar.
O tempo todo são mostradas as trapalhadas inacreditáveis: a divisão de negociadores (qualquer leigo sabe que só pode haver UM negociador direto em situações graves de seqüestro), a inoperância, a falta de jeito para lidar com a população que cercou o local (o fim do seqüestro quase termina em praça de guerra), e principalmente a influência do governador Garotinho. Esta é mostrada sub-repticiamente, aos poucos, deixando claro o que todo mundo já sabe: o governador proibiu que executassem Sandro na frente das câmeras (o que seria tecnicamente e estrategicamente a única coisa a fazer, no momento em que Sandro põe a cabeça e o braço armado para fora pela janela).
Ou seja, por causa de futuros ganhos políticos, uma vida, a da professora Geiza, foi perdida - para que o "pobre governador" não tivesse problemas. É triste, que República.
"Ônibus 174" é um filme para quem quer sair do cinema chocado, em silêncio, pensando no meio em que vive. Não é recomendável para pessoas que tenham a intenção de ver a vida através do próprio umbigo. Pode fazer mal ao estômago - e pior, o mal ser confundido com gastrite.
Abaixo, uma curiosa parte da sentença do juiz Mazza, que encontrei aqui
(...) 5.2 Por derradeiro, destaco que o MP mostra desconhecer a realidade ao afirmar que a conduta dos réus gerou clamor público e sensação de impunidade no meio social. Uma vez presentes, realmente justificariam a prisão preventiva postulada. Mas, na verdade, o grande clamor que houve foi com relação à morte de Geisa, jovem atuante na comunidade da Rocinha, o que inclusive deu ensejo à manifestações sociais. A revolta foi tamanha que populares tentaram linchar Sandro no próprio local e provavelmente matariam-no ali mesmo se não fosse a ação dos denunciados. A morte dele, como aduz o MP, pode ter ocorrido na forma de execução sumária, como na época medieval, já que estrangulado e morto por asfixia em momento que estava sob proteção do Estado. Fato grave e que, caso seja comprovado, sem dúvida nenhuma exigirá uma punição exemplar. No entanto, não podemos ser hipócritas e afirmar que a morte de Sandro pela polícia tenha causado um clamor por parte da população. Ao revés, ninguém chorou a sua morte, sendo que muitos até a aplaudiram, conforme diversas vezes a mídia noticiou. Que a operação policial foi trágica, desastrosa e quiçá criminosa não há quem conteste, mas sentimentos de clamor e de impunidade, com relação aos réus, simplesmente não existem.
5.3 Assim, pelos motivos acima expostos, INDEFIRO o pedido de prisão preventiva.(...)