22 outubro, 2002

As trilhas e os rumos
"Trilhas e rumos" era a marca - ou ainda é - de "equipamentos aventureiros" preferida da galera quando eu tinha entre 17 e 21 anos, um período realmente obscuro da minha biografia (tivesse eu o ego um pouco maior e compararia esse tempo ao período entre a adolescência e a crucificação, no qual até hoje ninguém sabe o que Cristo andou fazendo). Hoje, andando na pista Cláudio Coutinho, pensei nas trilhas. E pensei nos rumos. Mais uma vez a sensação de vertigem inevitável diante das coisas que mudam sem te avisar.
Na parte abismal da pista, colocaram uma grade. Mais do que necessária, pois um passo em falso levaria o corredor direto para o colo do além. Mais à frente, banquinhos em pequenos jardins floridos, sagüis espalhados por arbustos, e a trilha para o Morro da Urca completamente aberta, a mesma trilha onde há 20 anos eu me embrenhava e saía todo cheio de carrapichos. Hoje, um passeiozinho para turistas gordos e desavisados.
Não subi. Continuei a caminhada, pensando no que poderia ter me levado a ficar tanto tempo sem andar naquela pista - a vista para o mar, obviamente continua belíssima. Se há uma coisa que resiste ao tempo é a vista para o mar, seja de onde for.
Mais adiante, um cão, cão mesmo, não cachorro. Não grande, mas também não pequeno, mas um cão - nome que se dá para mim a cachorros com cara de selvagem ou de abandonado. Ou ambos - na verdade, pode-se ser selvagem e abandonado, uma coisa como conseqüencia da outra. Comentei com Marcele, que caminhava ao meu lado (antes dela ir para a aula na UFF), que o cão deveria pertencer ao "Sem Futuro". Explica-se: Sem Futuro é o Gomes. Não é um mendigo, pois a ninguém pede nada. Não é um louco, pois não se vê ele fazendo nenhuma loucura, a não ser morar há anos, desde que eu era criança, no meio do mato que fica logo abaixo do Pão de Açúcar.
Como diz Cortázar, "um exercício para chorar é pensar em um daqueles golfos da Terra do Fogo, onde ninguém vai, nunca". Eu acrescento: um exercício para chorar é imaginar uma chuva grossa como a que provavelmente está caindo agora, e o Sem Futuro ali no meio do mato, procurando uma caverna para se abrigar, ele e os dois cachorros e dezenas de outros bichos.
E, sim, completamente sozinho. O Sem Futuro, como o chamávamos há 15 anos, ainda existe, ou seja, teve futuro, ainda o tem. Meu caminho se cruzou com o dele mais uma vez - quantas vezes ao pegar uma trilha errada eu ia parar na "casa" dele (uma clareira com roupas penduradas e objetos espalhados pelo chão), e me assustava, mas ele apenas nos olhava, às vezes sorria, mas nós iamos embora.
Completamente sozinho esses anos todos. Ele e os dois cachorros - que talvez nem sejam os mesmos. E nessas horas fico pensando se alguma coisa é real ou se simulamos quase tudo mesmo, como a velha história do homem que sonhava ser um gafanhoto sonhando que é um homem. Hoje, ao confirmar que o cão era do Sem Futuro, o procurei, e dei de cara com ele, absoluto, soberano, sentado à beira do caminho em uma cadeira de praia, com a pose de um rei, olhando para o falso horizonte daquele pedaço de oceano.
Como se para um rei bastasse um falso horizonte.