19 outubro, 2002

O mundo de Capra
Sexta-feira light, em casa com Marcele vendo "A Felicidade não se compra" ("It´s a wonderful life"), talvez o filme da minha vida, que adquiri recentemente em DVD. Ótima cópia, com exceção de um ou dois cortes abruptos mas que não prejudicam nada. Como sempre, assisto o filme em lágrimas pelo menos desde a metade até o final apoteótico. E olha que já vi "It´s a wonderful life" umas dez vezes. Mas não tem jeito. Em um mundo onde pessoas praticamente ignoram a existência do sentimento alheio, ver George Bailey abrindo mão de sua felicidade em nome de pessoas desabrigadas é simplesmente de cortar o coração.
Para quem nunca viu essa obra-prima do diretor italiano (radicado nos EUA) Frank Capra, explica-se: George Bailey é o herdeiro de Peter Bailey, que em plena depressão dos EUA manteve uma loja de empréstimos que financiava casas para pobres em Bedford Falls. Quem dá o lastro financeiro para as atividades dos Bailey é Henry Potter (não confundir com o Harry), banqueiro frio e calculista que vê números onde deveria ver pessoas.
O grande sonho de George é viajar, conhecer o mundo. Às vésperas de ele partir para a faculdade, parte essencial nos seus objetivos, o pai morre. Durante a reunião para avaliar se a Bailey Loans & Building deveria continuar ou fechar, Bailey solta um discurso incrível, que me lembra algumas coisas dos dias de hoje: "O senhor, senhor Potter, quer que as pessoas fiquem juntando dinheiro ao longo da vida inteira e só depois tenham suas casas próprias, mas para quê? Quando elas vão poder ter isso? Quando estiverem velhas, sozinhas, e os filhos abandonado suas casas? Elas querem agora, senhor Potter". O discurso de Bailey arrepia - me lembra mesmo algumas teses dos dias de hoje, e olha que o filme é de 1946.
Os acionistas gostam do discurso e mantém a firma funcionando com uma condição: que Bailey seja o presidente. Daí em diante, Bailey segue fracassando. Não viaja na lua-de-mel, quase vê a firma fechar, vai morar em uma casa velha caindo aos pedaços, fracassa em seus sonhos, fica a mercê da prisão por causa de problemas com o banco. Até que decide se matar. Ou deseja nunca ter nascido - o que, em termos de ficção é um suicídio interessante.
Um anjo faz Bailey viajar por uma Bedford Falls em que nunca existiu George Bailey, e o que se vê é um cenário terrível.
Enfim, "A Felicidade não se compra" é um filme maravilhoso, espetacular, comovente, digno, com um discurso de paz inigualável em toda a história do cinema. É quase um filme socialista, quando mostra o trabalho dos Bailey em promover justiça social e mais tarde quando o mesmo povo divide o prejuízo com George. Surpreende, já que James Stewart, o espetacular intérprete de Bailey, andou sendo citado como um dos caras que gostavam muito de McCarthy. E Capra freqüentemente é acusado de direitista.
Nesses tempos em que sentimentos são o de menos - o que importa é a aparência, a indiferença, o poder que se exibe e a auto-satisfação - é claro que faz chorar, ver George Bailey voltando a acreditar que a vida é um presente divino, é claro que comove ver Bailey cercado de amigos, o fracassado Bailey sendo amado por todos, sem que para isso tenha triunfado em nada. Ou, no fim das contas, triunfado naquilo que é o principal da vida, naquilo que a torna, se não eterna, mas pelo menos longe do fim.