12 outubro, 2002

Estrada para Perdição e Beleza Americana
Os dois filmes do inglês Sam Mendes parecem inicialmente tratar sobre temáticas americanas, mas para usar um antiqüíssimo clichê, no final das contas são filmes sobre cidadãos do mundo. No mais recente, com Tom Hanks excelente - o cara virou ator mesmo - no papel de um pau-mandado de gangster, me parece haver uma discussão entre a vida que se simula e a vida real.
O filho de Michael Sullivan, também Mike, de 12 anos, assiste uma execução na qual o pai estava participando. Sam é genial nesse ponto, pois ele não vê o pai matando, e sim Connor, o capanga em torno do qual vai girar o filme. No dia seguinte, Michael, o garoto, volta ao dia-a-dia familiar, no qual o hábito era 1-o pai chega na mesa com o jornal 2-as crianças tiram e lavam os pratos 3- esperam o pai terminar o café 4- vão para a escola, onde Michael é péssimo em matemática e gosta só de histórias e Peter, o mais novo, é excelente aluno em ciências exatas.
Só que Michael volta ao dia-a-dia modificado, pelo simples fato de saber a verdade, e se recusa a participar da simulação. Então diz, "ora, é só um prato", e rasga o invisível contrato familiar, e a partir daquele dia, da maneira mais terrível e trágica possível, passa a viver de verdade. Quem viu o filme sabe do que estou falando - ele passa a viver a verdade do pai, e depois a dele própria, seguindo em frente, acima das simulações familiares.
Esse talvez seja o grande mérito de Sam Mendes: a crítica à família, de uma forma menos complexa, mais direta do que David Cooper ("A morte da família") faria se tivesse uma câmera. Mendes critica a simulação, e expõe a verdade entre seres humanos unidos por laços genéticos - como em Beleza Americana, quando Kevin Spacey diz, "isso aqui é apenas uma porra de um sofá" (quando no início de uma transa a mulher dele, a excelente Anette Bening, se levanta preocupada em derramar cerveja em um sofá), parece Michael dizendo agora, em Estrada para Perdição, "isso é apenas um prato".
Tanto o lar de "Estrada para Perdição" quanto o de "Beleza Americana" parecem lares perfeitos no início, com orações antes das refeições, rotina tranqüila, futuro "assegurado". Mas à medida que a lente se aproxima, revela que todo mundo esconde alguma coisa, menos eu e meu macaco, como diria Lennon & McCartney. Michael esconde o cachimbo com o pé em "Estrada...", porque não quer ser visto fumando, a menina esconde a paixão pelo vizinho em "Beleza Americana", vizinho este que tem equipamentos eletrônicos de último tipo comprados com a venda de drogas - mas ele diz ao pai que trabalha como garçom. E em "Estrada...", claro, os filhos mais novos não entendem o que o pai faz à noite profissionalmente, ainda que talvez não custasse nada explicar que "eu queimo arquivos".
Tanto um como o outro são filmes sobre pessoas que vivem temporariamente a vida de verdade, de pessoas que fazem uma ruptura ainda que momentaneamente. Em "Beleza Americana" é a falência profissional e familiar que leva Spacey a viver o que ele chama de sua verdade, e em "Estrada para Perdição", é a tragédia que causa a ruptura. Me comoveu ver o jovem Michael narrando, ao fim do filme (calma, não tenho nada a ver com o Meninos, eu vi, não vou contar o final), sobre "aquelas seis semanas que ele viveu" ao lado do pai.
Em suma, os filmes de Sam Mendes parecem ser uma discussão entre o tempo psicológico e o tempo real, de como ambos se encontram, e que a forma de promover ese encontro exige ruptura da simulação. Ou, em termos esportivos, o que vale é tempo de bola rolando.