28 outubro, 2002

De repente essa clareza para notar
É difícil arrumar algo para comparar. Não é bem a sensação de uma coisa ter vinda tarde demais, não sinto como se fosse um sonho atrasado - até porque o Lula de 2002 me parece muito mais qualificado para reconduzir a nação aos trilhos do que o Lula de 1989. Mas foi feliz e ao mesmo tempo angustiante ver Lula discursar para milhares na Avenida Paulista, ver uma coisa que nunca tinha acontecido antes: pessoas comuns comemorando a eleição de um presidente. Não, não houve a mesma coisa com FHC, muito menos com Collor, jamais com Sarney. E de Sarney para trás, nem pensar. Jânio? JK? Dutra? Talvez Getúlio Vargas tenha provocado essa mobilização popular espontânea - mas depois de 1937, ele já tinha contestação o suficiente para não estimular muito essas manifestações quando foi eleito pelo povo em 1950.
Lula é, portanto, um marco. Pela primeira vez um país inteiro festeja, quase como na música imortal de Aldir Blanc: "Onde tantos iguais se reúnem contando mentiras para poder São pais de santo, paus de arara, são passistas; são flagelados, são pingentes, balconistas, palhaços, marcianos, canibais e uns pirados, dançando o domingo de olhos abertos na sombra da alegoria dos faraós embalsamados". Sim, parecia esse domingo, que na letra genial de Aldir é um domingo que deveria ser triste mas é o da felicidade dos excluídos.
Ao lado de Marcele, no Bar Hipódromo, senti o coração apertar, ao ver a cena: pessoas felizes com uma eleição de um presidente, que falava na televisão. Insisto, é estranho, inusitado. Claro, alguém deve ter festejado a chegada do Collor ao poder em 1989 - mas não se pode negar que foi a festa do ódio, ódio aos marajás, ódio aos comunistas baderneiros, etc.
A festa ontem tinha um quê de alívio, de esperança como eu nunca tinha visto. Pessoas se abraçavam naquele bar Esperança em que se tornou o Hipódromo, onde parecia que todo mundo estava. Cumprimentei uns 25 conhecidos. Via as imagens do Leme, da Avenida Paulista, de Belo Horizonte, de Recife, de Caeté, e vi que a força desse desejo é enorme, que nunca um presidente chegou ao poder com tanta responsabilidade, quase como um herói de todo um povo que precisa disso e há muito não tem. Fora os Ronaldinhos e Romários, não havia heróis para esse povo que tanto necessita.
Mas fiquei pensando em quem ficaria feliz mesmo com aquela festa: eu mesmo, há 13 anos, quando chorei de verdade, decepcionado com a vitória do ódio, que foi a vitória do Collor. Uma desilusão que me levou, nos anos seguintes, a acreditar menos em soluções políticas, que me levou a não votar no Lula, até que no primeiro turno, um mês antes, li a carta que eu escrevera para mim mesmo. Não, mentira, eu já estava decidido a votar no Lula, mas ver aquela carta para mim mesmo, que escrevi após a derrota de 1989 e guardei em um pacote cheio de coisas da eleição, encarei tudo como uma dívida.
Eu tinha que pagar essa dívida com aquele que chorou, aquele que já não está mais aqui, que sou, ou era, eu mesmo.
E ontem, ao lado de Marcele, feliz com a vitória do Lula, eu pensei: i wish you were here. Sim, queria que o Gustavo de 1989 estivesse ali. Não está mais. Mas agora ele pode descansar em paz. A dívida foi paga. O desejo dele, atendido. Lula é presidente do Brasil.
Talvez um anjo tenha ganho suas asas.