27 fevereiro, 2002

Mordendo vagas

Ela andava pelas ruas e não via nada de novo. Todos os rostos que diariamente passavam com seus corpos para lá e para cá, pálidos, morenos, mulatos, novos, envelhecidos. Mulheres de salto alto e cabelos longos atravessaram a rua. Olhos claros a olhavam intrigados e não entendiam sua mania de franzir o rosto, como se as coisas fossem sempre muito ruins. Ela vira uma senhora que negou distraída uma esmola a um mendigo retroceder logo em seguida, quando constatou a deficiência física do homem que se arrastava pelo chão. A avenida era carioca. Ela estranhou a bondade cética, a caridade classificatória. Não gostou.
Os olhos claros a olhavam enquanto ela via apenas outros olhos. Pensando nisso, cantarolou. Queria dizer tanta coisa. Escondeu que chorar era uma necessidade tanto quanto rir. De repente, sentia que a sua incompetência a avermelhava inteira, de raiva, pudor, tristeza e fúria. Gostava da palavra fúria. Pensou se fosse outra pessoa... aquela moça ali, de camiseta verde, bandana também verde na cabeça, de cabelos ondulados e olhos castanhos. Quem ela seria? Uma moça andando para o metrô. Parecia advogada e talvez não chorasse tanto. Talvez também não risse tanto. Quem saberia se vivia? Quem saberia o quê ela vivia? Quem saberia como ela vivia? Então, quis ser ela mesma, normal à exaustão, simples como uma calçada de pedras portuguesas ou uma fruta de conde. Ou uma noite de escritas deslumbrantes e de um amor constante e fiel. Lembrou que aqueles olhos claros sugeriram que ela escrevesse cartas de amor. Ela obedeceu com mais afinco que a um receituário médico: sentir-se feliz era urgente. Inventou destinatários. Depois as rasgou. Rasgou também sua língua naquela mordida feroz que deu na vida. Doeu. Ela xingou. Ardeu, ela reclamou. Mas o prato ainda estava cheio. Ela tentaria acabar de comer devagar e atenta.