Crepúsculo
Aquele índio dos livros do Carlos Castañeda, o Don Juan Matus, dizia uma frase que ficou para sempre na minha memória (afinal, lá se vão 20 anos desde que eu li Carlos Castañeda): "O crepúsculo é a fresta entre dois mundos". Hoje, neste fim de tarde de sábado em que Marcele está trabalhando como escrava e eu fico esperando, percebi repentinamente que há muito não vejo um crepúsculo.
Nem mesmo virando a noite (a palavra vale para a chegada do sol e para a despedida, é engraçado), nem no fim do dia, quando no horário das 18h geralmente estou metido na redação, telefonando para alguém ou desenhando página.
Vendo esse fim de um sábado ensolarado, percebo o quanto faz falta essa percepção de que a noite chega, de que o manto escuro está se espalhando, essa sensação de que a maré da escuridão está subindo e que se você não correr para a luz pode acabar com trevas até o pescoço.
É assim no mato. É assim na vida. Apreciamos o crepúsculo, mas tememos a noite, nós que moramos nos grandes centros urbanos. Sim, queremos sair, queremos ir aos bares, às boates, mas geralmente temos medo na volta. Ou na ida.
Pelo lado espiritual da coisa, eu sinto que é difícil o sujeito conseguir o estado de concentração ideal, de inspiração e sentimento adequados, se ficar muito tempo sem ver um pôr-do-sol. Nem que seja esse aqui, em um quarto escuro, com um computador, uma vela e ao fundo Al Jarreau cantando "Come Rain or Come Shine".
Estranhei um pouco a súbita angústia desse cair de tarde, mas me lembrei o motivo: poder estar em casa na hora do crepúsculo me lembra muito o tempo em que eu era obrigado a estar deitado, com dores terríveis, achando que o fim da linha, se não estava em frente, estava sempre do lado.
Sim, o crepúsculo, pelo menos para mim, é a fresta, não entre dois, mas entre vários mundos. Alguns claros, outros escuros, mas todos terrivelmente finitos, que me obrigam a viver intensamente tudo o que for possível.
Sim, o crepúsculo. Talvez seja o crepúsculo - ou algo ainda mais forte que todo o movimento que faz esse sol que nos desprotege: a saudade de Marcele. Sai logo do trabalho, caramba.
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