09 novembro, 2002

Nepotismo
Peço licença para publicar aqui artigo de minha prima, jovem estudante de Comunicação Social, mas que sabe milhões de vezes mais de cinema do que muito enganador por aí. O artigo saiu em um jornal de Barbacena, MG, por isso o filme de Fernando Meireles ainda "está em cartaz".
Está em cartaz na cidade o tão esperado Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, baseado na obra homônima de Paulo Lins. Tudo o que lhe for dito sobre a intensidade do filme é pouco perto do que você vai encontrar. Muitos críticos o vêm chamando "o renascimento, uma guinada no cinema brasileiro". Talvez porque de essencialmente brasileiro, o cinema feito em Cidade de Deus não tenha quase nada. O teor sim, é muito a nossa cara, muito perturbador, surpreendente e verídico.
E para dar esse tom de veracidade à história, quase todos os atores foram colhidos em ambientes de favelas: mesmo porque a ginga, os trejeitos e um linguajar de favelado são elementos inimitáveis. Cidade de Deus é um soco na cara e ao mesmo tempo injeta esperança na alma de quem acredita na redenção da arte. É um cinema inimitável e definitivo. Depois dele qualquer próximo filme sobre favelas vai ser furada. Há muito da técnica do novo cinema inglês e até do movimento Dogma 95 presentes em Cidade de Deus, é um filme com toques rebuscados mas sofisticado; sua aura entretanto é bem brasileira. O mais triste diferencial em assistir a um filme ultra-violento europeu e um ultra-violento nacional é saber que quase nada neste último é maquiado ou exagerado. São questões sociais o que se vê na tela, mas antes disso é a história de um grupo de pessoas que nasceram na Cidade de Deus, escreveram sobre isso e sobre muitos que nunca saíram de lá.
A realidade transcende a arte por diversas vezes; às vezes supera, às vezes elas se justapõem. Nenhum outro filme na história do cinema nacional se comprometeu com a ingrata façanha de descortinar tão apaixonadamente todas as etapas do crime organizado no país. Alguns como Lúcio Flávio, Lili Carabina, O Homem da Capa Preta e outros se concentravam em relatar jornalisticamente um mito ou um fato aleatório relativo ao crime. O mito em Cidade de Deus é o crime sedutor, a vida frágil desprotegida e a luta por ela, a perda gradativa de seu valor.
O filme começa com um tenso batuque nos situando na Cidade de Deus. Uma galinha prestes a ser degolada e ir pra churrasqueira escapa milagrosamente e foge por sua vida entre as sufocantes vielas do conjunto habitacional, que depois virou favela e é hoje certamente uma das maiores sucursais do inferno na terra. A galinha corre aflita numa das sequências mais legais do filme, e desde então nota-se como a luta pela vida em uma favela é permanente, seja você um soldado do tráfico, um vapor barato ou uma galinha.
O filme, à moda italiana, é inteiramente narrado por Buscapé, um menino preto pobre e azarado da favela que se apaixona por fotografia e descobre seu verdadeiro dom: ser fotojornalista.
Apesar do filme não ser nunca unilateral, não chover no molhado criticando o sistema e mostrar apenas analiticamente o alastramento da violência e a banalização das mortes, existe uma linha estreitíssima, mas existe, que vem a separar o mal como escolha e o mal como fardo. É pungente perceber como crianças vão se desumanizando, sendo sugadas para o lado criminoso, como vão sendo desenvolvidas gangues, vinganças e os pretextos que serviam de razão a prováveis sociopatas, que iniciaram então a onda de violência que hoje chega às raias de guerra civil. Cidade de Deus é dramático, mas não há espaço para reflexão durante o filme.
Entre sacadas legais, como o momento em que o clique da câmera de Buscapé se funde a um disparo de revólver, um dos grandes trunfos do filme é a glamourização cinematográfica desse alastramento, - apesar do cinema nacional não se livrar jamais da câmera inquieta e do celulóide granulado feito polaroid. Em Cidade de Deus a câmera é magistral, são olhos vidrados, o roteiro é inteligente e bem construído, os efeitos são simples e às vezes a atmosfera de videoclipe dá um tom menos documental, o que o faz cinema para todo mundo. Imagens estroboscópicas, trilha disco dancing, apenas a trilha incidental poderia ser mais pesada e envolvente. Cidade de Deus é duro mas indispensável. Deveria ser mostrado nas escolas primárias. Se você tem filhos, por menores que sejam, leve-os a assistir Cidade de Deus.
Ainda sobre Buscapé, é ele o autor do livro na vida real (e o que ali não é real?) e é quem nos dá a mão e com certo distanciamento nos conta nos mínimos detalhes o mundo cão na favela com nome de cidade onde o dono certamente jamais esteve.
Assim como o talentoso fotógrafo que esteve na hora certa, no local certo, se mostrou um predestinado mas na hora de publicar suas fotos se mostrou receoso em contar toda a verdade, o filme também fez suas escolhas, e não mostrou algumas verdades perigosas, como o apadrinhamento político do tráfico. É cinema verdade, mas certos vespeiros não cabe ao cinema cutucar. A polícia do Rio é retratada sempre como corrupta, mas isso a gente já está careca de saber, então se algumas verdades mostradas foram tão duras e indigestas, talvez algumas outras seja melhor mesmo nem se descobrir.
Algumas considerações
Aqui no Plaza
(Nota do Blog: shopping-center de Barbacena), onde, dos becos insólitos e incertos da Cidade de Deus vim direto para uma praça de alimentação histericamente iluminada (onde havia somente pessoas brancas sentadas sorrindo), foi um misto de choque e alívio me sentir segura, plasticamente envolvida por vitrines de shopping-center; mas a vida parece ter menos sentido e emoção aqui no mundo burocrático. Não sei quanto ao leitor, mas eu me senti mais segregada do que qualquer favelado e de mãos atadas diante do processo de degradação de um país. Só quem não tem coração ou consciência vai sair o mesmo depois de assistir a Cidade de Deus.
Daí fui ver o filme de novo, numa terça chuvosa e a platéia da cidade se comportava como se estivesse em casa, a maioria ria insensível como se fosse uma comédia corriqueira. No banheiro do cinema ouvi os comentários mais imbecis, que me fizeram refletir se a sociedade sente de fato o impacto que Cidade de Deus deveria causar. Não. Não sente. Sente a violência como fato isolado, e pelo menos ali, naquela sessão, muitos não conseguiam absorver a espetacular história da Cidade de Deus. E segui caminhando pra casa, com um certo enjôo, e ri à toa quando me lembrei da história de que o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, mandou na década de 60 pintar todas as favelas de amarelo durante a visita de um presidente americano (acho que foi Eisenhower). E andei pelo centro da cidade certa de que não haveria nenhum tiroteio, nenhuma galinha e que o magro policial perto de mim deve ser honesto e de fato me defenderia de um ataque eventual.
A vida reta pareceu ter menos emoção sem tanto medo ou risco, e a mensagem principal que eu extraí do filme foi a da fuga desesperada pela sobrevivência. Percebi que precisamos proteger a vida a qualquer custo, resgatar seu valor, defender a vida em qualquer forma, eternizá-la em imagens, fotografias, e festejar diariamente sua dificuldade.