Nepotismo
Peço licença para publicar aqui artigo de minha prima, jovem estudante de Comunicação Social, mas que sabe milhões de vezes mais de cinema do que muito enganador por aí. O artigo saiu em um jornal de Barbacena, MG, por isso o filme de Fernando Meireles ainda "está em cartaz".
Está em cartaz na cidade o tão esperado Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, baseado na obra homônima de Paulo Lins. Tudo o que lhe for dito sobre a intensidade do filme é pouco perto do que você vai encontrar. Muitos críticos o vêm chamando "o renascimento, uma guinada no cinema brasileiro". Talvez porque de essencialmente brasileiro, o cinema feito em Cidade de Deus não tenha quase nada. O teor sim, é muito a nossa cara, muito perturbador, surpreendente e verídico.
E para dar esse tom de veracidade à história, quase todos os atores foram colhidos em ambientes de favelas: mesmo porque a ginga, os trejeitos e um linguajar de favelado são elementos inimitáveis. Cidade de Deus é um soco na cara e ao mesmo tempo injeta esperança na alma de quem acredita na redenção da arte. É um cinema inimitável e definitivo. Depois dele qualquer próximo filme sobre favelas vai ser furada. Há muito da técnica do novo cinema inglês e até do movimento Dogma 95 presentes em Cidade de Deus, é um filme com toques rebuscados mas sofisticado; sua aura entretanto é bem brasileira. O mais triste diferencial em assistir a um filme ultra-violento europeu e um ultra-violento nacional é saber que quase nada neste último é maquiado ou exagerado. São questões sociais o que se vê na tela, mas antes disso é a história de um grupo de pessoas que nasceram na Cidade de Deus, escreveram sobre isso e sobre muitos que nunca saíram de lá.
A realidade transcende a arte por diversas vezes; às vezes supera, às vezes elas se justapõem. Nenhum outro filme na história do cinema nacional se comprometeu com a ingrata façanha de descortinar tão apaixonadamente todas as etapas do crime organizado no país. Alguns como Lúcio Flávio, Lili Carabina, O Homem da Capa Preta e outros se concentravam em relatar jornalisticamente um mito ou um fato aleatório relativo ao crime. O mito em Cidade de Deus é o crime sedutor, a vida frágil desprotegida e a luta por ela, a perda gradativa de seu valor.
O filme começa com um tenso batuque nos situando na Cidade de Deus. Uma galinha prestes a ser degolada e ir pra churrasqueira escapa milagrosamente e foge por sua vida entre as sufocantes vielas do conjunto habitacional, que depois virou favela e é hoje certamente uma das maiores sucursais do inferno na terra. A galinha corre aflita numa das sequências mais legais do filme, e desde então nota-se como a luta pela vida em uma favela é permanente, seja você um soldado do tráfico, um vapor barato ou uma galinha.
O filme, à moda italiana, é inteiramente narrado por Buscapé, um menino preto pobre e azarado da favela que se apaixona por fotografia e descobre seu verdadeiro dom: ser fotojornalista.
Apesar do filme não ser nunca unilateral, não chover no molhado criticando o sistema e mostrar apenas analiticamente o alastramento da violência e a banalização das mortes, existe uma linha estreitíssima, mas existe, que vem a separar o mal como escolha e o mal como fardo. É pungente perceber como crianças vão se desumanizando, sendo sugadas para o lado criminoso, como vão sendo desenvolvidas gangues, vinganças e os pretextos que serviam de razão a prováveis sociopatas, que iniciaram então a onda de violência que hoje chega às raias de guerra civil. Cidade de Deus é dramático, mas não há espaço para reflexão durante o filme.
Entre sacadas legais, como o momento em que o clique da câmera de Buscapé se funde a um disparo de revólver, um dos grandes trunfos do filme é a glamourização cinematográfica desse alastramento, - apesar do cinema nacional não se livrar jamais da câmera inquieta e do celulóide granulado feito polaroid. Em Cidade de Deus a câmera é magistral, são olhos vidrados, o roteiro é inteligente e bem construído, os efeitos são simples e às vezes a atmosfera de videoclipe dá um tom menos documental, o que o faz cinema para todo mundo. Imagens estroboscópicas, trilha disco dancing, apenas a trilha incidental poderia ser mais pesada e envolvente. Cidade de Deus é duro mas indispensável. Deveria ser mostrado nas escolas primárias. Se você tem filhos, por menores que sejam, leve-os a assistir Cidade de Deus.
Ainda sobre Buscapé, é ele o autor do livro na vida real (e o que ali não é real?) e é quem nos dá a mão e com certo distanciamento nos conta nos mínimos detalhes o mundo cão na favela com nome de cidade onde o dono certamente jamais esteve.
Assim como o talentoso fotógrafo que esteve na hora certa, no local certo, se mostrou um predestinado mas na hora de publicar suas fotos se mostrou receoso em contar toda a verdade, o filme também fez suas escolhas, e não mostrou algumas verdades perigosas, como o apadrinhamento político do tráfico. É cinema verdade, mas certos vespeiros não cabe ao cinema cutucar. A polícia do Rio é retratada sempre como corrupta, mas isso a gente já está careca de saber, então se algumas verdades mostradas foram tão duras e indigestas, talvez algumas outras seja melhor mesmo nem se descobrir.
Algumas considerações
Aqui no Plaza (Nota do Blog: shopping-center de Barbacena), onde, dos becos insólitos e incertos da Cidade de Deus vim direto para uma praça de alimentação histericamente iluminada (onde havia somente pessoas brancas sentadas sorrindo), foi um misto de choque e alívio me sentir segura, plasticamente envolvida por vitrines de shopping-center; mas a vida parece ter menos sentido e emoção aqui no mundo burocrático. Não sei quanto ao leitor, mas eu me senti mais segregada do que qualquer favelado e de mãos atadas diante do processo de degradação de um país. Só quem não tem coração ou consciência vai sair o mesmo depois de assistir a Cidade de Deus.
Daí fui ver o filme de novo, numa terça chuvosa e a platéia da cidade se comportava como se estivesse em casa, a maioria ria insensível como se fosse uma comédia corriqueira. No banheiro do cinema ouvi os comentários mais imbecis, que me fizeram refletir se a sociedade sente de fato o impacto que Cidade de Deus deveria causar. Não. Não sente. Sente a violência como fato isolado, e pelo menos ali, naquela sessão, muitos não conseguiam absorver a espetacular história da Cidade de Deus. E segui caminhando pra casa, com um certo enjôo, e ri à toa quando me lembrei da história de que o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, mandou na década de 60 pintar todas as favelas de amarelo durante a visita de um presidente americano (acho que foi Eisenhower). E andei pelo centro da cidade certa de que não haveria nenhum tiroteio, nenhuma galinha e que o magro policial perto de mim deve ser honesto e de fato me defenderia de um ataque eventual.
A vida reta pareceu ter menos emoção sem tanto medo ou risco, e a mensagem principal que eu extraí do filme foi a da fuga desesperada pela sobrevivência. Percebi que precisamos proteger a vida a qualquer custo, resgatar seu valor, defender a vida em qualquer forma, eternizá-la em imagens, fotografias, e festejar diariamente sua dificuldade.
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