Alcatraz não é o bar perfeito
Todo mundo já deve ter lido uma crônica do Paulo Mendes Campos na qual ele descreve o bar ideal. Entre vários detalhes que à primeira vista parecem insignificantes, o genial cronista praticamente define o bar ideal como se fosse uma espécie de prolongamento de sua própria casa. O relacionamento com os garçons e com o dono é parte fundamental da avaliação. Mas isso era em um tempo em que as pessoas bebiam profissionalmente. E em um tempo em que todos nós éramos números, sim, mas números vivos. Hoje somos apenas estatística - a parte mais fria dos números.
A música está tendo seu movimento de desumanização, que é o bate-estaca, o tecno - "Depois da música eletrônica, a voz humana não faz mais sentido para mim", é a frase-símbolo dessa ideologia. O cinema já tem, com filmes em que o uso de atores não se faz necessário - tudo na base da computação gráfica. Na literatura, escritores já escrevem livros on-line com possibilidade de pitaco dos leitores. E até no futebol o tecno-brucutu-superatleta Emerson é mais cotado para a Seleção do que o craque imperfeito-humano-problemático Romário. Enfim, vivemos em um mundinho da assepsia, pois todos nós somos imortais. Sim, ninguém morre mais. Somos estatística, ou seja, sendo estatística, somos imortais, né? Para que termos a arte que cuide de evitar que a Verdade nos destrua?
Sim, esse desabafo pseudo-intelectual todo é para expressar o meu horror em relação à vertente Bar do movimento de anti-humanização. E o maior representante desse movimento entre os bares se chama FAR UP, na Cobal do Humaitá, em Botafogo. O bar-Alcatraz, por definição.
Por que Alcatraz? Porque a única característica que é exclusiva do Far Up é: não há como escapar. Você já começa sendo registrado de uma forma constrangedora: pedem sua carteira de identidade. Maior invasão de privacidade, atentado aos direitos individuais, difícil imaginar. Registram seu nome em um computador e colocam você dentro de um cartão magnético, o qual você usará para pedir as coisas que você quer consumir. Ah, a consumação é de R$ 26 para homens e R$ 16 para mulher.
Lá dentro, o público é realmente eclético: tudo o que não presta. E a pior coisa para mim é a presença exacerbada de amadores. Não vi um profissional sequer, um sujeito que bebesse como alguém tarimbado para a coisa - a não ser na minha mesa, onde estava Luis Edmundo e João Marcello Erthal (todos nós com nossas senhoras), dois bebedores decentes.
Atrás de nós, moleques bêbados de tequila falavam gírias insuportáveis e esbarravam em mim toda hora. Um deles me pediu desculpas umas cinco vezes. Menos mal. O esquema de garçons era feito para ser impessoal: havia um garçom para anotar o pedido e o número do seu cartão magnético, e outro garçom só para trazer comida. Este NUNCA sabia qual era a mesa ao certo. Um terceiro garçom anotava mais pedidos, geralmente confundindo com o anterior. Dois chopes foram para no meu cartão - eu e Marcele não bebemos chope.
Seguranças por toda parte - como convém a um lugar onde só tem amadores bebendo. Na hora de pagar, um gorila fica ao lado, fazendo não sei o quê - provavelmente clonando meu cartão. Ao invés do cara do caixa me dar a conta e eu passar o cartão pro cara do caixa, o orangotango de gravata fica fazendo o papel de intermediário (a 30 centímetros de distância). Constrangimento igual, difícil imaginar.
Claro que eu fiz questão de reclamar dos dois chopes errados. Note bem, DOIS chopes errados. O cara do caixa, NA MINHA FRENTE, chama alguém pelo rádio (?), um garçom vem, porque é aberta uma sindicância, perguntam ao garçom, PORQUE ELES NÃO ACREDITAM NA SUA PALAVRA.
Os dois chopes - vejam bem de novo, dois chopes - foram tirados e a conta baixou de 56 reais para 48. Ou seja, menos dois chopes, menos oito reais. PQP.
Na saída, mais alguns Australopitecus e Neandertais na porta, você entrega os cartões, eles passam na maquininha, e aí dizem "obrigado". Ha. Obrigado por nada. Fico pensando: e se, por algum problema tecnológico, o cartão acusar que não está pago? Mais constrangimento? Um daqueles pitecantropus me segura? Ou vem um cro-magnon?
Não há escapada do Far-Up. É o anti-bar - para mim, nada mais humano do que o bar onde você conhece os garçons e de repente pendura sua conta, sei lá, paga com pré-datado. No Far-Up ninguém é humano, todo mundo é estatística. A síntese do Pague para entrar, reze (para não ter problema na maquinha dos cartões) para sair. O anti-lugar do caralho, da música do Wander Wildner. Se eu não estivesse muito bem acompanhado na mesa, teria ficado de péssimo humor. É um lugar onde ninguém é ninguém.
Pelo menos o garçom que atendeu a gente chorou direitinho no whisky.
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