06 agosto, 2002

Salto alto
Decididamente, não acostumava-se a andar de salto alto. Era um pouco moleca e gostava mesmo de estar com os pés descalços, calçar sapatos baixos, tênis e chinelo. Mas sempre teve fascinação por sapatos. A primeira vez que experimentou um sapato de salto alto, lembrava-se bem, fora na infância, em brincadeiras intermináveis com a irmã, quando tornavam-se “manequins” de um desfile de moda no comprido corredor da casa onde moravam. Os sapatos plataforma da mãe eram separados com cuidado para o que chamavam de evento. Vasculhavam todas as gavetas até descobrirem o novo esconderijo das duas únicas perucas restantes na casa que a mãe escondia propositalmente para maior diversão das filhas. Quando seu pai morreu, uma série de inoportunas lembranças, em especial daqueles momentos em que ela não esteve presente em sua vida, a corroeram. “Será assim em todas as mortes?”, pensava. As razões de sua tristeza eram confusas; sentia-se interrompida bruscamente em sua dedicação. Anos depois, comprou uma bota de couro preta, de salto alto, com curvatura acentuada entre o calcanhar e o peito do pé e andou com propriedade por tantas ruas como se fosse a criança enfeitada de outrora, a mesma que registrara carinhosamente o sorriso de um velho barbudo olhando-a no fim de um comprido corredor.