02 março, 2002

A morte nunca anunciada
Meus avós, hoje mortos, moravam em um prédio aqui perto de casa, na Urca, quando eu tinha seis ou sete anos de idade. O porteiro do prédio era um homem de uns 40 anos, negro, de bigode, chamado Bento. Um nome extremamente religioso, e não por isso era um ser humano asceta, o Bento. Uma vida monástica, ele levava. Quase a solidão do "Um homem chamado Alfredo", do Vinícius.
Bento torcia pelo América, um time que na época, por volta de 1975, tinha um bom time. País, Uchoa, Alex, Geraldo e Álvaro; Ivo, Bráulio e Tadeu Ricci; Flexa, Luisinho Lemos e Gílson Nunes. Isso aí, com algumas variações, claro, houve um tempo em que Orlando Lelé, que depois jogaria no Vasco, ocupou a vaga de Uchôa, que depois iria para o Vitória da Bahia.
Mas, voltando ao assunto, me lembro de minha mente com o HD ainda limpo, vendo imagens do diabo em chaveiros do América mostrados pelo Bento, vendo um diabinho sorrindo, me chamando para torcer para o time dele - mas eu era Flamengo, e nada como ser Flamengo para ter respeito pelos outros clubes e por suas histórias. E a solidão enorme de Bento, com sua vida de frei dominicano, porteiro de um prédio simples e sem interfone da Urca, me fazia ver o futebol quase como uma salvação - aquele homem não tinha nada, mas tinha o América. Era feliz com o seu América.
Em todas as fases da minha vida até aqui, eu morei na Urca, e via o Bento envelhecendo, mudando, andando de um lado para o outro, indo ao bar, voltando, enfim, vivendo cada vez mais seu ascetismo em um deserto que tinha se transformado seu coração. Ainda por cima, o América caía por terra.
Nunca deixamos de nos cumprimentar. Eu dizia, "Bento", e ele, "Gustavo". Só. Nunca uma pergunta, uma recomendação. Eu tinha crescido, e ele compreendia isso. Curti uma adolescência sempre difícil, depois saí do segundo grau, passei uns anos estudando, lendo e fazendo trabalhos temporários, entrei para a faculdade, vivi grandes amores, desilusões, comecei a trabalhar em jornais, vivi mais grandes amores, e a única coisa, além da minha própria família, que parecia permanecer como um sentinela do que um dia eu fui, era justamente o Bento. E seu chaveiro do América, que estava lá, com certeza.
A solidão não matou Bento, com certeza. Mas o acolheu de uma vez só, porque reparei esses dias que o velho negro de bigodes grisalhos não mais se arrasta do prédio em frente ao meu ponto de ônibus, não mais se posta inutilmente a zelar por um prédio simples, não mais vive uma vida que se não é um pesadelo, também não é sonhada por ninguém - talvez aí esteja a maior solidão dele, ninguém sonha com sua vida, apenas ele.
Não tenho visto o Bento, e não sei sequer se ele morreu. Ou se esteve realmente vivo de alguns anos para cá.