08 janeiro, 2002

Um conto sem título

Ela levava uma surra quase todos os dias caso não levasse o dinheiro para casa. Parece uma história feminista e é. Porque Marieta era dessas mulheres magras, de ombros curvos cujo olhar triste é imprescindível. Lavava roupa por encomenda, cada trouxa um tanto, e assim ia sustentando seus três filhos e seu marido alcoólatra. História fácil de inventar e boa para contar, foi o que pensei e decidi fazer quando a conheci.
Nos idos de 1935, saudoso tempo em que "chovia cântaros", todos "debulhavam-se em lágrimas" e eram acometidos de "frouxos de risos"; quando era possível encontrar na capital do país grandes personalidades da nossa literatura e história; quiçá usar "quiçá" e ponto e vírgula com estilo, Marieta, a pobre mulher castigada pelo destino, angariava, com esforço, dinheiro para dar ao seu marido, o senhor José, cujo sobrenome me recuso a dizer. Marieta envelheceu à proporção de seus cinco partos, de suas inúmeras trouxas de roupas lavadas, de suas mãos calejadas e de sua força. Sua preocupação com o futuro era imediata: o jantar, a calça a cerzir, ou o brusco marido a lhe esperar. Outras ansiedades haveriam, mas tão exteriores, que até me sinto constrangida por viver hoje com o meu individualismo sobejo.
E no momento reflexivo, calmo, de pura respiração, surgia o poético cotidiano empoeirado das tardes passadas nas varandas quando o sol iluminava inocente e incoerente as poeirinhas estáticas nos feixes de luz da casa. Então abrandava-se o coração numa trégua de segundos vividos um a um, de frente para o relógio antigo da parede da sala, os olhos pesados de dor e sono, o ombro cansado fechando o corpo ao descanso enquanto um copo de aguardente era virado numa esquina próxima. Haveria tempo para um pequeno vácuo? Marieta omitiu. O principal ela contou com orgulho, que saíra para entregar a roupa limpa numa de suas atormentadas tardes. Lembrou que fazia muito calor naquele dia. E julgara que a freguesa iria ficar contente com tanta presteza e eficiência. Mas a "madame", que pena, estava sem dinheiro no momento da entrega. "Posso pagar-te semana que vem", pediu-lhe. "Antes receber semana que vem do que nunca", pensou a nossa velha do século XXI. Agradeceu com um sorriso chocho, baixou a cabeça para ver os degraus e já se despedira da "madame" prometendo retornar na semana seguinte, à mesma hora, quando ela ofereceu-lhe um saco com restos de comida. "Muito agradecida" - ela deve ter dito com sincero pudor, foi o que pensei quando ouvi - e só então retomou o caminho de casa e da surra que lhe aguardava. Conformada e cabisbaixa, é como imagino que fora o seu caminhar pelas ruas, acostumada que estou a ver tais situações. Na esquina, um gato sentado sobre um papelão miava faminto. Marieta olhou o animal e, pensando que a comida não iria salvá-la das mãos de José, abaixou-se com os restos recebidos de "madame", pondo-os na direção do gato que levantou-se ágil e curioso para a refeição tardia.
No papelão, não mais um gato. No papelão, sob o "assento" do gato, antes oculto, brilhou uma nota de um dinheiro equivalente ao necessário para Marieta apenas dormir...sem marcas, choros e resignação.
E este, com certeza, não foi o único dia na vida de Marieta a valer uma história excepcional que mereceu sorrisos sem rancores nos seus 93 anos de agora.