02 abril, 2003

Sob o dhomínio do mal (e do rancor)
Eu tinha prometido a mim mesmo não fazer a mesma coisa que mais ou menos 600 mil blogs vão fazer hoje: falar sobre o resultado final do Big Bosta Brasil 3.
Só que eu não resisti, ao saber que mais de seis milhões de pessoas (na verdade, não sei quanto foi o total, a maioria das matérias on-line desse momento simplesmente ignora essa informação) votaram no tal assessor parlamentar. E votaram num cara que é assessor parlamentar, deixando de fora uma professora de 18 anos que trabalhava como semi-escrava lá no sertão da Bahia - se é que a biografia dessa gente não é inventada também.
Eu entendi o que eu mesmo sentia: rancor. Sim, rancor, de saber que aquele cara ali levou R$ 500 mil FORA O QUE GANHARÁ com Marketing, de saber que o cara é um completo retardado, enquanto eu não paro de estudar, de ler, de me aperfeiçoar, de procurar fontes de informação, de batalhar cursos, e ainda assim ganho uma merreca por mês para levar esporro se eu colocar que o artilheiro do campeonato goiano teve 11 e não 12 gols. Algo por aí. Em suma, ele tem três processos por agressão e R$ 500 mil no bolso. Eu tenho ficha limpa e conta bancária idem.
Dá um certo rancor, sim. Acredito até que natural, comum, estilo Dire Straits na década de 80, "now look at them yo-yo´s, that´s the way you do it?/You play the guitar on the MTV/That ain´t working!!!/Money for nothing and chicks for free". Eu sou um dos caras que tem que levar microondas e instalar refrigeradores daquele ótimo videoclipe.
Aí eu pensei: eu, sozinho? Não. Acho que somos uma sociedade forjada a ferro e fogo no rancor. Por que os três ganhadores do Big Bosta são capiaus? Por causa do rancor. Quem tem sotaque vota em quem tem sotaque. A idéia de sprit-du-corps me parece forjada no rancor. Preto vota em preto, branco vota em branco, deixe eles para lá.
Música que homens e mulheres sempre abrem os braços e o berreiro para cantar: "Você pagou/com traição/a quem sempre lhe deu a mão". Rancor puro. Dor-de-cotovelo em sua forma mais gelatinosa. E tudo que é música que fala que um belo dia resolveu mudar e mandar o cônjuge ou namorado (a) se fuder, pode ver que faz sucesso na pista de dança. Todo mundo já levou ou deu um pé na bunda. Todo mundo já falhou ou foi vítima de falha humana. E tome rancor.
Eu acho que o rancor moveu essas seis milhões de pessoas que preferiram votar no tal assessor parlamentar - de quem, o Brasil ainda não sabe - eu iria adorar se no final o tal Dhomini fosse assessor do Eurico Miranda, mas infelizmente o dirigente vascaíno não é mais deputado.
De uma forma ou de outra, o rancor está presente nessa história. "Uma menina de 18 anos com esse dinheiro todo?" - rancor de quem não teve grana com essa idade. "Uma garota atirada" - rancor de quem queria ser atirada e não é. "Vou no garoto, pelo menos tem o sotaque da minha terra, é minero", rancor regionalista, contra o outro, contra o outro bairro.
Nelson Rodrigues uma vez escreveu que Flamengo e Fluminense são os Irmãos Karamazov do futebol brasileiro, por terem sido concebidos pelo rancor. Penso nesse conceito aplicado a toda a nossa sociedade - ande pelo Rio e converse com quem não tem dinheiro, você vai ouvir rancor. Revolta, rebeldia, desânimo, enfim, de tudo, mas rancor. Tanto que é por isso que é tão difícil para aqueles pouquíssimos ricos com preocupação social se aproximarem da periferia - o rancor dos pobres é grande.
E tem, claro, o rancor dos ricos. Rancor contra a esquerda, contra o governo, contra os impostos, contra os empregados, contra as greves, contra a família, contra a mulher que o corneia. Tudo parece ser movido pela mola da revanche, da vendeta. Rancor de chefe contra subordinado, e vice-versa (principalmente o vice-versa).
E agora, o Big Bosta vai conseguir dividir a nação em duas partes rancorosas. E eu estou do lado daqueles que não entendem como alguém pode deixar de votar numa professora de 18 anos para votar num, porra, cacete, "assessor parlamentar". E neguinho pagou 27 centavos para isso. Tem que pegar o votante e sacudir pelo gasganete: "ô caralho, assessor parlamentar NÃO PRECISA ganhar essa porra!".
Enfim, haja rancor. Espero não ser contagiado por isso - apesar de eu desejar que o rapaz pegue o dinheiro dele e vá passar as férias em Maceió, perto de um carioca que está em curta temporada por lá. Quem sabe eles não dividem a grana.