13 março, 2003

Crônica do horror absoluto
Na terça-feira, um acidente doméstico levou a avó de Marcele a baixar hospital. Resumido assim, parece até que não foi nada demais, mas dando uma lida no blog dela é fácil perceber que minha namorada teve um dos dias mais terríveis de sua vida.
Por desígnios da sorte, do destino, da Força Superior, a avó dela não quebrou nada, apesar de ter perdido sangue o suficiente para contrair anemia.
Mas a anemia se explica pelos diálogos abaixo, que tirei do blog dela. Frases que ela ouviu dos médicos da ambulância (que a atenderam muito bem, com consideração), frases que traduzem a realidade de um país completamente falido. País onde neguinho tá preocupado em saber se o outro cheira ou fuma (e gasta-se milhões para tentar impedir as pessoas de fazerem isso, ao invés de investir contra o crime em si), país em que as pessoas pagam 80 reais por quatro caipirinhas, mas país merda o suficiente para que uma pessoa de 77 anos tenha que perder sangue porque bandidos travestidos de médicos vêem os outros como estatística. Um país onde professor é assassinado na porta de casa em Laranjeiras e governador (a) vem dizer que não precisa de ajuda federal. Um país de violência cotidiana em todos os níveis - sim, porque considero o comportamento desses médicos algo criminoso e violento.
Abaixo, vocês lerão frases que deixam qualquer um sem esperança. Muito difícil conviver com essa realidade - e que não é de hoje, não é nenhuma novidade.
Devo lembrar, antes de tudo, o seguinte: a avó da Marcele TEM convênio e os hospitais contactados SÃO do convênio.
Resumindo: mesmo pagando o convênio, se você tiver um enfarte e sua família contactar o hospital, os médicos ainda passam horas analisando se você pode ser atendido na EMERGÊNCIA ou não.


Os relatos
"Nós não podemos levar a sua vó para qualquer um dos hospitais conveniados. Se chegarmos lá antes da central confirmar que tem vaga, eles não aceitam. Mandam a gente pra outro hospital e por aí vai. Vamos ficar batendo de hospital em hospital, até arrumar vaga."
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"Os hospitais sempre embromam para dizer que tem vaga. Dependendo do plano, eles sempre dizem que não tem. É até estranho isso acontecer com o plano da sua avó, porque ele é um plano bom. Isso acontece mais com o plano X, normalmente é o que demora mais."
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"Alguns hospitais só gostam de receber artistas. Esse daqui de Copacabana é um desses. Outro dia nós fomos atender um funcionário do Projac, que tinha caído de uma escada e estava ferido. Ficamos tentando vaga em vários hospitais, sem sucesso. E lá no Projac eles gostam desse hospital daqui de Copacabana. Eu liguei para o hospital, expliquei o caso e nada: eles diziam que não tinha jeito, que não tinha vaga. Então eu disse que era um artista, que estava fazendo novela, só que eu não conseguia lembrar o nome dele de jeito nenhum. Liberaram a vaga imediatamente. Quando chegamos no hospital, tinha uma equipe esperando a gente na porta. Ficaram me perguntando: 'quem é esse?', eu respondi 'ih, não lembro o nome!' e saímos de lá rápido, antes que eles mandassem o levarmos para outro hospital."
***
A situação já estava de um jeito que o médico da ambulância chegou a sugerir:
"Vamos tentar mais alguns hospitais. Se não conseguirmos, a senhora pega a paciente, coloca dentro do seu carro e a carrega para o hospital conveniado mais próximo. Tudo bem, o procedimento correto não é esse, ainda mais para uma senhora de idade que sofreu uma queda e perdeu tanto sangue; mas dessa forma, se a paciente chegar ao hospital em um carro de família, eles têm de atender, se não podem ser acusados de omissão de socorro. Na ambulância não, eles mandam voltar."

(Extraído do Agridoce