02 dezembro, 2002

O encontro com a História
Neste dia 2 de dezembro, acordei cedo, e fui para o Leme, direto da minha casa. Eu e o chefe da fotografia do jornal. Tocamos o interfone de um prédio antigo, até humilde, apesar de ser de frente para o mar, mas humilde para o morador que tem.
Subimos pelo elevador até o terceiro andar e entramos por um corredor escuro, de onde saio para uma grande sala, arejada pelos janelões abertos e pela brisa que entrava, vinda diretamente do mar. Ou da África.
Em uma sala conjugada, um homem velho está sentado numa poltrona. Vejo apenas parte de sua cabeça, cabelos grisalhos e alinhados. Ele olha fixo para uma televisão, ligada no canal Globonews. As mãos colocadas nos apoios da poltrona de costado alto lembram a posição de um rei.
Com ajuda de um empregado, ele se levanta, aos poucos, combalido. Este homem se chama Telê Santana. Como diria Napoleão Bonaparte, 50 anos de futebol nos contemplam neste momento.
Telê sofre as seqüelas de uma isquemia sofrida em 1996, e tem dificuldades para falar. É nessas horas que deixamos de acreditar em castigo - pois não pode ser por castigo que Deus escolheu esse caminho para Telê. O mesmo homem que mostrava energia, sabedoria, rancores, raivas, emoções, estava ali, munido apenas de um sorriso - não fosse o mesmo sorriso que ostenta há décadas, talvez não fosse o mesmo homem.
Sua mulher fala com orgulho, enquanto ele concorda com a cabeça, e de vez em quando diz frases curtas. As conquistas pelo Fluminense como jogador (Telê ganhou um título mundial pelo Tricolor em 1952, um campeonato mundial reconhecido na época pela FIFA), vários estaduais, torneios Rio-SP (dois, eu acho), e um estadual como técnico. E ainda o único título brasileiro do Atlético-MG. E um bicampeonato mundial pelo São Paulo. Sem contar o fato de ter montado times espetaculares mas que não venceram títulos, como o Brasil de 1982 e o Palmeiras de 1979.
E de repente, começamos a falar de 1982. Sua mulher elogia o time, diz que Deus determina as coisas, e que Suas escolhas são inapeláveis. Telê fica sério.
Interrompo a mulher para falar da minha grande tristeza, do trauma que talvez atinja toda uma geração: a cabeçada de Oscar no final do jogo contra a Itália, quando perdíamos por 3 a 2. O zagueiro sobe em um escanteio e cabeceia a meia-altura, no canto esquerdo do goleiro italiano Zoff. Este faz a maior defesa de sua vida, pegando a bola praticamente com uma das mãos e caindo agarrado à bola.
Telê se lembra e exclama:
- Foi a maior defesa da vida do Zoff. Caiu com a bola junto. Uma grande defesa.
Me surpreendi um pouco - afinal, antes de tudo foi uma defesa que interrompeu um sonho, dele e de milhões de brasileiros. Mas Telê fala dela com a altivez que sempre caracterizou sua carreira, como se antes dos sonhos viesse a paixão - no caso, o futebol.
Já ao final, quando perguntei à mulher de Telê o motivo de seu apelido, ela respondeu que tinha sido um concurso da época. O apelido, para quem não sabe, é Fio de Esperança.
E vi então a explicação: o suspiro profundo de Telê ao ouvir de novo o apelido, um suspiro que ele ainda não havia dado durante toda a entrevista. Um suspiro que era quase um fio de esperança.
Faz sentido. Nada pode ser Telê. No máximo, "quase". Afinal, Telê é desses homens que são a História.