16 novembro, 2002

O Botafogo
Vivo dizendo isso: essa rivalidade entre Flamengo e Vasco - uma invenção do Eurico, pois não dá para rivalizar com clube que perde três finais seguidas para o meu time (1999/2000/2001) - é coisa nova, de quem tem menos de 30. Depois do Fla-Flu, claro, que é o clássico que tem o maior número de finais dramáticos (vide o gol de barriga, o Fla-Flu da Lagoa, os títulos 83/84 - infelizmente, todos com o tricolor em vantagem), o negócio do time da Gávea era com o Botafogo. Isso mesmo, com esse time folclórico, lendário, mítico, e de enorme tradição que pode ser, neste domingo, 17 de novembro, rebaixado para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.
Meu pai viveu de perto os anos alvinegros, de Garrincha, Didi, Nilton Santos, Amarildo, Quarentinha e mais tarde Gérson, Jairzinho, Roberto Miranda. E sofreu muito, vendo o Flamengo perder duas finais por 3 a 0. Por isso, a rivalidade era grande - tanto que, em 1989, cinco anos depois dele ter nos deixado, eu e meu irmão víamos a final Flamengo x Botafogo com esse pensamento. Juiz apita o fim do jogo (1 a 0 para o Botafogo, aquele gol de Maurício, empurrando Leonardo), assim que o primeiro torcedor alvinegro pisa no gramado, um de nós desliga a TV e ele diz, petrificado: "AINDA BEM que papai não está vivo para ver isso". E eu concordei, entendendo a gravidade de um momento que só quem realmente gosta de futebol pode entender.
O pior de tudo - o que faria meu pai se decepcionar comigo, caso estivesse vivo: eu não consigo me sentir feliz com o rebaixamento do Botafogo. Para um rubro-negro de berço, como eu, é quase uma heresia dizer isso, mas a verdade é que todo mundo um dia já foi Botafogo na vida. Principalmente de três décadas para cá, quando o time passou a viver entre dias de sonho e anos de pesadelos. Todo mundo já acreditou um dia que teve a vida salva por um sortilégio, todo mundo já perdeu um dia, já sofreu por paixão - como sofrem os alvinegros - já se atirou de alegria em uma arquibancada por motivos fugazes.
E o Botafogo tem um pouco dessas coisas - uma esperança em coma, que nem vive nem morre, uma esperança que não é verde e, acima de tudo, é solitária. Olhe-se para a torcida do Botafogo, e se vê um grupo de pessoas unidas, torcendo, sofrendo, cantando em côro perfeito. Mas ao se olhar mais de perto, o que se vai ver é o maior bando de pessoas solitárias que se tem no futebol. O botafoguense não tem a identificação imediata entre eles apenas por causa do clube - rubro-negros, tricolores e vascaínos têm a capacidade de, num encontro qualquer, de desconhecidos, basta o time em comum para assaltado se entender com assaltante.
Já o botafoguense, não. Ele quer que o outro, além de torcer pelo Botafogo, prove que é botafoguense. Que é meio classe média com conta de luz atrasada, que tem saudades do Mendonça, que viu Cremílson em sonhos, que votaria em Nilton Santos para presidente da República.
O botafoguense é meio Nilton Santos, esse senhor de 75 anos que recentemente teve a memória aviltada com a eleição de Roberto Carlos como melhor lateral-esquerdo da história das Copas. Francamente, o que é um Roberto Carlos perto de Nilton Santos?
O Botafogo impõe respeito pela paixão da torcida, tudo bem. Mas há outras coisas impressas naquela camisa alvinegra que para mim ainda são indecifráveis. Por isso disse que o Botafogo é o mais brasileiro dos times - é só para o Botafogo que existe o ditado "tem coisas que só acontecem com o Botafogo". Com o Brasil é a mesma coisa.
O alvinegro de General Severiano tem história demais, transbordando - muito mais até do que o Santos de Pelé, ousaria dizer. Para mim, Carlito Rocha é o desempate na disputa entre os dois clubes, um com o Crioulo e outro com o Mané. Por isso o Botafogo traz na medula espinhal a memória de mil anos de vitórias sofridas, derrotas idem e resignações amargas. Um botafoguense está sempre esperando, como os brasileiros ao lado dos leitos de morte de seus ídolos (vide Tancredo e Mário Covas). O botafoguense muitas vezes tem o aspecto de perplexidade de quem acompanha um enterro há muito tempo esperado.
Antes disso, o botafoguense já sofreu, na maioria das vezes, não por futebol. Talvez por isso ele procure o Botafogo, por uma questão de identificação, de solidariedade. Não é qualquer um que pode ser Botafogo - podem reparar isso. Temos grandes idiotas torcendo pelos outros três clubes grandes do Rio. Mas quando se fala em Botafogo, o buraco é mais embaixo. Por tudo isso fiquei abismado quando o comentarista Falcão certa vez disse que o Palmeiras tinha mais tradição que o Botafogo - sinceramente, no dia em que isso acontecer o Tiririca se torna presidente da Academia Brasileira de Letras.
Bastaria para mim terminar dizendo que o Botafogo é o time de Paulo Mendes Campos, Sandro Moreyra, João Saldanha. Mas estes três, por mais grandiosos que sejam, ainda não absorvem toda a resignação e a paixão alvinegras.
Uma simples cena explica tudo: Morumbi, numa quarta-feira à noite, final do torneio RJ-SP de 2001. São Paulo X Botafogo, com os paulistas podendo perder por até três gols de diferença. O estádio tomado por eles. Era como no início de "Asterix" - toda a Gália está ocupada. Toda? Não, uma pequena aldeia resiste agora e sempre ao invasor.
Todo o Morumbi estava ocupado? Não, um pequeno grupo de botafoguenses resistia e haverá de resistir. Mesmo tendo tomado de quatro no jogo anterior, eles foram.
Isso é que faz a diferença no Botafogo. É o time da resistência, da tomada de posição até o fim, do "a guarda morre mas não se rende". E na maioria das vezes, a guarda morre.
O botafoguense, mesmo derrotado, sempre se orgulha de dizer "eu estava lá". É quase como se dissesse "eu não me rendi".
Neste domingo, portanto, talvez até meu pai evitasse secar o Botafogo. Jamais, jamais por pena ou coisa assim. Meu pai talvez, do alto de sua alma completamente rubro-negra, acharia absurdo um Brasileirão 2003 com Paysandu e Figueirense (já garantidos) e sem a camisa que teve Garrincha. Incoerência total.
Por tudo isso que escrevi, hoje e no ano passado (misturei dois textos), vou torcer para o Botafogo se manter na primeira divisão.
Mas sem exageros, sem excessos. Até hoje ainda não engoli aquele empurrão do Maurício no Leonardo em 1989.