01 setembro, 2002

Tarantino vai ao paraíso
Cidade de Deus. Com certeza, nove entre cada dez blogs vão falar deste filme nos próximos 15 dias. Vai ser mais monótono do que a época em que todos os blogs se dividiam entre Big Brother e Casa dos Artistas. Mas sinceramente? Acho que é isso mesmo. Todos têm que falar, bem ou mal, de Cidade de Deus. Antes de qualquer coisa, é um filmaço. Incômodo, medonho, assustador, desconfortável. Violência nua e crua, como se Quentin Tarantino estivesse fazendo escola em países abaixo da linha do Equador - uma violência mais cheia de calor e de suor, mais suja de asfalto, graxa e restos de animais mortos.
Se alguém pensa que vai encontrar em Cidade de Deus um quase-documentário, algo meio pungente e classe média com dor na consciência, bom, terá uma surpresa. Em determinados momentos o filme não tem moral ou caráter ou mensagem ou postura. É aquilo e pronto. Em outros, sim, há o bom e o mau ladrão, como numa parábola religiosa. E mais um elemento "tarantinesco", que me lembrou muito Pulp Fiction: os flash-backs, a repetição de uma mesma situação várias vezes a fim de esclarecer seu final (algumas vezes o espectador nem percebe a necessidade de explicação, e aí surge a história, surpreendente).
Os atores-amadores são milhares de vezes mais realistas, convincentes e assustadores do que qualquer ator profissional. Principalmente os garotos mais novos, a delinqüencia infantil, a falta de noção e de valores relativos à vida do ser humano, a ausência de futuro na mente, a ânsia pelo poder de quem é oprimido - Cidade de Deus tem esse mérito, de mostrar essa sede de poder de quem está no andar de baixo, o mais atingido pela opressão econômica e pelo poder desse mesmo dinheiro.
Cidade de Deus nos leva a um mundo perigosíssimo, medonho. Mas que se torna mais medonho ainda por causa de um fator: está a seis quilômetros da porta de nossa casa. Ali estão quase todas as motivações para o crime: ambição financeira, ódio ao establishment, ânsia de inserção social, passionalismos, vingança, desejo de poder e falta de alternativas. O espectador vai encontrar em Cidade de Deus vários personagens abraçando o crime por algum desses motivos (ou por vários deles, ou por todos eles).
Cidade de Deus não é como "Notícias de uma guerra particular", este sim, um documentário que prega a desesperança, o ceticismo e que termina deixando o espectador solitário, sem perspectiva. Cidade de Deus mostra uma certa humanidade quando aparece Bené, o bandido que vai incorporando valores de uma forma que deixaria Freud sorridente: em função do desejo, do amor, da carne, do sexo, o cara vai deixando o banditismo e trocando suas "qualidades" por outras novas: a vaidade, o desejo de popularidade, a paixão exacerbada.
Claro que o final de Bené não é moralmente compensador, não traz ensinamento algum para o espectador. Cidade de Deus não parece ser um filme para dar lição alguma, para ensinar nada, para chamar a atenção para absolutamente nada. É um filme sobre brasileiros, que falam palavrões o tempo todo (em cada frase de personagem tem dois palavrões ao menos), que trepam, que roubam, que trabalham ganhando mal, que lutam por perspectiva (chega a ser comovente ver o trocador do ônibus falando que um dia vai arrumar algo melhor), que estão nas ruas todos os dias.
Não vá ao cinema ver Cidade de Deus esperando ver a História. Vá ver uma (mais uma entre milhões) história.