01 maio, 2002

Abolaieu - Cena 2
O dia em que tudo deu certo e o dia em que tudo deu errado dentro de campo


Alguns sonham em ser piloto de caça. Outros, em ser engenheiro. Umas poucas crianças acreditavam no sonho de ser astronauta. E havia aqueles que sonhavam com a carreira militar, pois toda criança adora uniforme. Talvez porque a necessidade da existência de super-heróis defensores, numa época em que os medos e o desconhecido estejam sempre prestes a aparecer na próxima esquina, traga um certo conforto.
Mas enfim, eu não sonhava com nada disso.
Eu sonhava em ser o Deus da Raça.
Foi em dezembro de 1978, aos 41 minutos do segundo tempo, que Rondinelli, o Deus da Raça, marcou o maior gol da minha vida. Acredito que somente uma torcida (com todo respeito ao gol de barriga do Renato, ao gol do Maurício pelo Botafogo em 1989, aos gols do São Paulo bi mundial) no Brasil possui um gol daquela magnitude, daqueles em que você pergunta para o torcedor, "Onde você estava naquela hora?", e o cara lembra. Sim, só uma torcida, a do Corinthians, time pelo qual, quando criança, adquiri certa afeição exatamente por causa da intensidade da paixão desse gol: o de Basílio em 1977, contra a Ponte Preta. Rondinelli e Basílio, portanto, fizeram gols para dividir vidas.
A minha foi dividida naquela tarde de dezembro, pelo rádio, narração de Waldir Amaral. Mas esta é uma história para ser contada depois.
Importa é que, com o gol de Rondinelli, a única coisa que eu queria ser na vida era o Deus da Raça. E achava um sonho justo.

*************************************************

Foi em uma tarde na quadra de cimento de futsal (na época ainda era o doce futebol de salão, sem abreviatura) da Fortaleza de São João, que tive meu dia de Deus da Raça. Não posso ser modesto. Naquela tarde, jogando com a camisa do Nautilus (time da Urca) contra o time "Dos Caras Grandes do Forte", que tive a maior atuação da minha vida. Uma tarde qualquer de 1979, isso eu sei.
O número da camisa era cinco. Joguei basicamente como um volante. Marquei o tempo todo. Chovia cântaros, mas eu não parava em campo. Desarmava e imediatamente lançava, dei passes para uns três gols. Em uma das poucas oportunidades dos caras (o jogo foi 4 a 2 para a gente), meti o corpo na frente da bola, que explodiu nas minhas costas. Senti uma dor brutal, mas me levantei e fui caçar o atacante com sangue explodindo dentro das veias.
Poucas vezes me senti tão vivo. Ouvia pessoas impressionadas falando da minha atuação.
Nos minutos finais, fui à frente. Vi uma bola sendo lançada pelo alto, na direção da entrada da área. Entrei rápido, por trás da zaga, ajeitei e toquei entre as pernas do goleiro, que saía atabalhoadamente do gol. Golaço. De placa. O gol da consagração do melhor em campo, indiscutivelmente. Vitória incontestável.
Alguns meses antes, jogando pelo Fla-Urca, fui cabecear uma bola e levei um chute no meio do nariz. O sangue jorrava sem parar, mas como um imbecil eu continuei em campo, sequer desmaiei. Mas tudo, tudo era por causa do sonho de ser um Deus da Raça.

*************************************************

Passada uma semana depois da atuação consagradora pelo Nautilus, iria haver um jogo mais sério, de times combinados. Uniforme, redinha nas traves, no gramado da Escola de Educação Física do Exército, onde treinava de vez em quando a Seleção Brasileira. E mais: com platéia nas arquibancadas.
Me lembro de, na preleção, o cara que era técnico do Nautilus recomendando que eu estivesse em campo. Lembrava aos outros técnicos minha atuação consagradora.
Só que futebol de campo é outro departamento. A solidão é maior, o fôlego tem que ser dobrado. Mas eu me importava com isso? Queria uma tarde consagradora de novo.
No meio do jogo, início do segundo tempo, entrei como lateral-direito. Sonhava em repetir uma jogada de Toninho Baiano, lateral-direito do Flamengo, que dava um pique e, durante o mesmo pique cruzava na cabeça de Zico sem nem parar pra pensar.
Só que eu só podia avançar na boa. E a boa não vinha. Fiquei meio plantado.
Até que veio um ataque pela lateral-esquerda. O ponta deles entrou sozinho, nas costas do lateral, e o volante já estava batido. Como eu tinha ficado recuado, sobrou para eu dar o combate.
Olhei a situação e pensei em frações de segundos: a vinte metros de grama dali um ponta-direita de 1,80 e 80 quilos está vindo como um búfalo cafre em chamas rumo ao gol, disposto a passar por cima de mim, um moleque de 11 anos e 34 quilos. Se tanto.
Resolvi cobrir o goleiro, já que ele saía desesperado, ante os apupos da audiência. Surpreendentemente, o búfalo cafre, ao invés de seguir o instinto da manada e esmigalhar goleiro e zagueiro, deu um leve toquinho, e a bola seguiu pererecando em direção ao gol.
Ainda não existia o Windows nem Bill Gates, mas a imprevisibilidade da situação simplesmente fez minha cabeça dar pau. Travou. Não rodava mais nada. Nem programinha de pac-man.
Dei o boot, ou melhor, dei uma botinada na bola. Para dentro do gol.
Houve um breve segundo, de que não me esqueço, em que todos, jogadores, reservas, técnicos e audiência (umas 100 pessoas na arquibancada) ficaram em silêncio tentando entender porque eu colocara a bola simplesmente para dentro do gol.
Eu deveria ter aproveitado mais o segundo de silêncio, pois logo a seguir os sons se dividiam entre gritos de "filho da puta" e "tá maluco?" e milhares de gargalhadas de adversários e torcedores. Fui imediatamente sacado do time. Os meus dias de Deus da Raça tinham chegado ao fim.
A bola certamente iria entrar, e do jeito que eu vinha na corrida não conseguiria travá-la. Mas ninguém aceitou o bico que eu dei para dentro do meu próprio gol.

*************************************************

A vida passou, essa lembrança ficou, para sempre. E ficará, até o fim dos meus dias, com certeza. Naquele dia, sim, um sonho se realizara, e logo depois terminara de maneira abrupta. Mas o sonho acontecera, de qualquer maneira.
Quando se pensa que na vida os padrões de consumo nos empurram para sonhos cada vez mais mesquinhos, ou objetivos bobos e fúteis, sinto uma felicidade muito grande em saber que se pode querer apenas ser o Rondinelli, sim, o Deus da Raça, eternamente, mesmo que por uma só tarde.
No futebol, nessa alternância de uma tarde de glória com um desastre total, aprendi alguma lição, que não se traduz com palavras. Um dia vou conseguir entender. Mas deve ser algo a ver com a vida e a morte da criança que continua vivendo dentro de cada um de nós, aquela criança que continua querendo apenas ser o Deus da Raça e, ai, meu Deus, a gente contraria sendo somente coisas que a gente não é.

(No próximo capítulo, "Eu e os três outros grandes clubes do Rio")