16 março, 2002

Os melhores LPs da minha juventude - capítulo 3
Tapestry
Já falamos sobre o grande Sticky Fingers, dos Rolling Stones, e sobre o primeiro do Peter Framptom que tinha "Show me the way" e "Baby i love your way". Agora, chegou a hora de falar sobre esse espetacular LP da compositora americana Carole King, que ao lado dos outros dois citados era peça obrigatória em qualquer estante dos anos 70 - a menos que o freguês fosse roqueiro radical, do tipo quase metaleiro.
Para quem não lembra, "Tapestry" é o disco em que Carole está sentada perto de uma janela, em um quarto meio na penumbra, e com um gato logo em primeiro plano - a associação "mulheres independentes + gatos", a meu ver, sempre esteve bastante explícita nessa capa. Carole é lindíssima e, como o gato, passa a impressão, pelo menos fisicamente, de ser daquelas mulheres que depois de uma tórrida noite de amor viram-se para a gente e dizem: "Olha, acho que foi um erro que nós dois cometemos, ok?".
E, como gatos, no outro dia, essas mulheres voltam, ou telefonam dizendo que amam, enfim, algo assim que nos faz querer escutar "So far away", segunda faixa do disco, um dos hits de Carole, música preferida de Priscila Foggiato - outro dia eu aprendi a tocá-la e tive a idéia de deixar na secretária do celular dela. Só que a danadinha não tinha secretária no celular. Diacho.
"So far away/Does´t anybody stay in one place anymore?/It would be so fine to see your face at my door", é o que eu lembro da letra - e para quem vive uma situação dessas, é realmente uma trilha sonora fantástica, uma maneira de lembrar da dor e ao mesmo tempo aplacá-la flutuando nos suspiros de Carole King. E vem a pergunta: e quem nunca viveu uma situação dessas, da mulher amada estar longe, viajando, ou brigada, ou casando com outro, ou sumida na metrópole neurótica ou mesmo inexistente?
O disco emenda com um hit, "It´s too late", já regravada por dezenas de cantores e cantoras. "But it´s too late, babe, now it´s too late, tough it really did try to make it/Something inside has died, and i can´t hide, but i just can fake it", e todo o clima das congas tocadas pelo guitarrista Danny qualquer coisa.
Minha favorita é "Way over yonder", a sexta do CD, antes do mega-hit "You´ve got a friend" (gravado de forma magistral por Carole). Sentimentos aos montes, desesperança e ao mesmo tempo expectativa, uma vontade de sonhar, um gosto de devaneio, tudo envolve essa extraordinariamente bela canção de Carole. Dá aquela sensação em nosso coração quando, ao nos magoarmos com alguma coisa ou algum lugar, dizemos o famoso verso de Manuel Bandeira, "Vou-me embora para Pasárgada, lá eu sou amigo do rei". Pois "Way over yonder" fala de um lugar "where i can find shelter/from the hunger and cold/and the sweet tasting good life is easily found".
Sempre desejamos ir embora no momento de extrema mágoa - que nossas mulheres nunca mais nos vejam felizes, que nossos inimigos não tenham sequer os gostos de nossas mortes, que sejamos amigos dos reis e dos imperadores, depois que o desprezo nos machucou. E "Way over yonder" dá essa idéia, Carole além de ter composto uma música lindíssima ainda interpreta de forma doce.
O disco segue com "You´ve got a friend", depois "Where you lead", e uma canção que Carole compôs com seu marido Gerry Goffin - a letra é do cara, aliás. Chama-se "Will you love me tomorrow?" e antes de ser gravada por Carole foi sucesso na voz do grupo vocal feminino da Motown chamado "Shirelles".
É uma contrapartida - reacionarismo? - ao libertarismo, ao culto do amor livre que se desenvolvia no final da década de 60 (e que continua rendendo frutos hoje, só que em versão tecnológica). A canção pergunta, lindamente, "Esta noite você é meu, completamente/Você dá seu amor tão docemente/Esta noite as luzes do amor estão em seus olhos/Mas amanhã você ainda me amará?". Um apelo dos mais femininos em uma época em que muito priápico deve ter se disfarçado de hippie para praticar suas perversões sem ter que pagar pensão alimentícia.
O disco segue com músicas que nem gosto tanto, como "Smackwater Jack" e a própria música-título, "Tapestry", que é bonita mas foi infelizmente colocada antes de uma das mais lindas canções femininas de todos os tempos: "(You make me fell like) A natural woman", gravada na época também por Aretha Franklin, numa versão que deveria ser ouvida de joelhos e agradecendo a Deus por estar vivo. A versão de Aretha é comovente, mas a de Carole faz parte de todo um contexto, não menos feminino do que Aretha, mas como parte de um inteiro - de um feminismo fêmea que parecia estar começando, sem queima de sutiãs mas com direito a desejar seu homem, e que ele fosse só seu. Eu mesmo, ao longo da minha vida, sempre gostei de mulheres como Carole, que exigissem seu homem para si - em suma, mulheres que exigissem que eu não pensasse nem olhasse para outras (para quê?). "A natural woman" é uma ode feminina aos homens de verdade - nada pode ser mais feliz do que homens e mulheres se entendendo.
E no momento em que a gente não consegue se entender com nossas amadas, nada como ter "Tapestry" - onde eu encontro abrigo, da fome e do frio.