19 março, 2002

Do cheiro

Conversando com o André, invadiu-me, aqui, um impulso de impregnar cheiro de leite na palavra "vaca", de mato quando escrevo "árvore" e de café só porque estou tomando um. Quem sabe sobre os odores que sentimos? Odor é igual a aroma. Cheiro não é a mesma coisa. O cheiro é termo suave, sem deixar de ser forte; é sobre o cheiro que quero escrever. O cheiro abranda minha agressividade. Porque preferiria dizer 'fedor". Fede-se despreocupadamente, aleatoriamente, fede-se por displicência, por egoísmo ou por desgraça. Esta última palavra era proibida pra mim, minha mãe não gostava que eu a pronunciasse, mãe tem dessas coisas. Diria ela, se estivesse nesse texto: "não repita, minha filha, esta palavra tem cheiro de enxofre", e ela teria toda razão.
Então adoro escrever sobre coisas que não tem importância, como o cheiro.
A impaciência traz mofo às narinas, a pizza tem que ter cheiro de tomate e manjericão, e o livro novo tem cheiro em suas páginas, cheiro de livro novo. Também o velho traz cheiro de armário. De estante e coisa morta. A luz tem cheiro de areia. Meu gato cheira a coisa embrenhada. A moça fantasmagórica que sentou-se ao meu lado no ônibus, de pele muito branca, tinha cheiro de pessoa arquivada. Apaguei sem querer uma frase inteira que havia escrito sobre as pessoas que usam o mesmo perfume forte para demonstrar firmeza de personalidade. Unem seu cheiro à aparência uniforme de suas roupas de repetidos tons e cortes, como outdoors estranhos dessa sociedade exposta nas vitrines das lojas de uma Ipanema divertida e colorida dos sábados de manhã. Eu uso o mesmo perfume, alfazema. Mas não as mesmas roupas. Eu gosto de feder, também. Ter cheiro de suor e de cabelos oleosos. Cheiro de sal às dez da noite e de chulé quando tiro o tênis. Vou parar por aqui. Recebam a minha cortês rosa branca em botão, um pouco molhada e abrindo-se. Estou tentando desprender este cheiro do meu nariz pelo resto do dia. Mas é um cheiro bom. Como o de certas poesias.