22 outubro, 2001


TEXTO PUBLICADO NO SITE DA LOUD no ano 2000

PORQUE AS MENINAS DEVIAM SER MAIS COMPREENSIVAS COM OS MENINOS QUE AMAM FUTEBOL

O título é quase um apelo às mulheres que admiramos e sem as quais fica difícil sonhar – claro, porque no mais o sonho é a melhor parte de tudo. Quando se chega aos trinta, próximo do novo século, é sinal de que o sujeito já viu um meio-campo do Flamengo com Delacir, Aílton e Luvanor, ou mesmo um ataque alvinegro com Tuca, Cremilson e Puruca. Sem contar os estranhos centroavantes do Fluminense como Tulica e as aberrações vascaínas como Quiñonez. Em suma, quem tem trinta hoje em dia e ainda gosta de futebol, é porque gosta mesmo – seja qual for o time do cara, teve todas as oportunidades para largar o vício e não largou. Eu confesso que quase larguei em 1990, quando Bragantino X Novorizontino fizeram a final do Campeonato Paulista e o Corinthians foi campeão brasileiro com um gol de canela do Tupãzinho. Isso sem contar o gol de Caniggia contra o Brasil na Copa da Itália e, last but not least, a partida de João Saldanha para o clássico eterno.
Pois bem, depois de explicar para as meninas que o vício praticamente não tem chances de cura, o legal seria explicar como ele foi adquirido, assim elas entenderiam melhor. Eu, como rubro-negro, poderia dizer que adquiri o vício num final de tarde, aos sete anos de idade, saindo com meu pai do Maracanã (saudades do meu pai e do Maracanã, ambos falecidos), ouvindo ele falar num nome que eu nunca tinha ouvido antes: “Esse garoto Zico vai longe, já tem 30 gols no campeonato”. Zico terminaria de fato o Estadual de 1976 com 31 gols, contando com o feito naquela tarde inesquecível contra o América. Meu pai errou na conta, aquele tinha sido o 31 º gol dele.
Dois anos depois, ouvi pelo rádio o Flamengo perder nos pênaltis para o Vasco, e o tal Tita ser crucificado por ter errado uma das cobranças. Para mim era demais, eu tinha “já” nove anos e nunca tinha visto meu time ser campeão. Como podia? Aí veio a dose do traficante, ou seja, aquela dose que é pro cara viciar e nunca mais deixar de comprar a droga: o gol do zagueiro Rondinelli, um desses jogadores de futebol em que as pessoas comuns, hard working people, como dizem os Rolling Stones, têm orgulho em se espelhar. Era um dia de dezembro de 1978, o 0 a 0 dava o título do segundo turno ao Vasco – haveria uma decisão extra, pois o Flamengo ganhara o primeiro – e o Leão (esse que está de técnico) fechava o gol, parecia inumano. Eu não estava lá. Vários parentes meus testemunharam, meu irmão mais velho entre eles.
Muito nervoso, em casa, eu não conseguia mais ouvir o jogo, lá pelos 37 do segundo tempo eu desliguei o rádio, com a garganta presa, com vontade de chorar, tanto por mim pelos que estavam à minha volta, sabia que todos ficariam tristes também. Meu pai, principalmente, pois as derrotas do Fla o abatiam mesmo, e isso pegou em mim um pouco.
Só que o velho não perdia as esperanças – eu, com dez anos de idade, era muito mais niilista do que ele - , ele acreditava mesmo. E não deu outra. Aos 41, ele ligou o rádio, “vou ouvir até o final”. Jamais me esquecerei de que, no momento em que ele ligou o rádio, apareceu aquele “oooooooo” do meio da narração de gooooooooool do saudoso Jorge Cúri. Ao fundo, a vinheta que permanece até hoje, “Fla-men-gooo”, anunciando de quem tinha sido o gol. Do Flamengo. Em seguida, Jorge Cúri puxaria todo o “r” que ainda lhe restava na alma para soltar, “RRRRRRRRRRONNDINELLLI”, AOS 41 DO SEGUNDO TEMPO...”
Entendem, meninas, porque o futebol é tão importante? Dos momentos que eu tenho guardados na memória com mais intensidade com meu pai, esse se destaca, por causa da forte emoção, da cumplicidade que eu tive com ele, da felicidade que ele exibia. Morreria seis anos depois, mas feliz, com a fase de ouro que o Flamengo viveria, chegando a Tóquio e arrebatando o título mundial.
Do mesmo jeito que eu tenho esse momento com o velho, de saber em que parte da sala ele pisou quando me chamou para dizer que éramos campeões, cada um de nós tem sua história maravilhosa, seu choro muito particular em 1982 quando perdemos para a Itália, onde estava quando Baggio perdeu o pênalti, o que estava fazendo quando Leandro anunciou que não iria em 1986.
O futebol é isso e muito mais. É uma maneira menos dolorosa de sentir saudade, de ver o tempo passar galopando sem conseguir montar, levando coice, mas ficando firme. Pegue lá no armário seu velho álbum de figurinhas, e pense que aquela do Arzu, de Honduras, ou do Krankl, da Áustria, passou pelas mãos daquela primeira menina por quem você se apaixonou no colégio. E que você, nessa vida estranha e desencontrada (isso deveria ser pleonasmo) jamais verá novamente. Ou você não tem uma história como a minha em 1991, sozinho na Avenida Roberto Silveira, em Niterói, esperando o 996 depois de levar um fora da namorada mais inesquecível de todas, sem nenhum clima para gritar junto com as dezenas de carros com bandeiras do Flamengo que passavam comemorando o título estadual?
Minha vida sempre terá essas festas e dores como contas jogadas em um labirinto, para eu não me perder. Se é que um dia eu quero retornar. Um dia, nesse labirinto, talvez pinte lá o grande Minotauro e ele me chame para sair dele. Mas enquanto isso eu quero ver pelo menos mais um gol do Petkovic.
Enfim, espero que as meninas possam entender. E se elas entenderem mesmo, vão notar que nós que gostamos de futebol, no fundo, no fundo, gostamos mesmo é de mulher. E que a bola é só uma “valorizada” das manhãs de sábado e das tardes de domingo.