NO INÍCIO DE 2001, PENSANDO NO TEMPO, E NA VIDA JOGADA FORA
0h – Não, não estou em uma contagem, nem regressiva, nem progressiva, mas pontuo a vida pelos números, para que eu me lembre que sou mortal, para que eu saiba quanto eu terei quando a vida começar, para que eu entenda quantos anos me restarão depois que eu parar de trabalhar e finalmente fazer as coisas que meu corpo apodrecido nem poderá tanto. Mas pontuo, pontuo, e em cada meia-noite hei de estar dormindo, na inconsciência justa dos sonados, no travesseiro terno do meu desamor.
0h – Eu conto as horas, os dias, os segundos, as batidas do meu coração. Eu odeio esses números todos, amo as letras, mas não sei com quem fico. É meia-noite, eu poderia estar dormindo, mas sempre há algo diferente do dia anterior, ou melhor, da noite anterior, nesse azulado escuro que me asfixia, com essas poças que gritam quando os carros passam em cima. Ficar sozinho também é bom, posso curtir de uma maneira mais desapaixonada, menos embriagada, o meu leve estado de torpor causado pela cerveja e pelo vinho. E caminho de volta para casa, ao invés de pegar um táxi. Afinal, nem toda hora é meia-noite.
2h- Sonho com meu chefe, penso na tristeza, lembro de antigos enterros. Me lembro, durante o sonho, que tenho de acordar cedo, e sentir os vergalhões pontiagudos do despertador furando o tecido da minha inconsciência sem perdão, essa sensação dolorosa de que é preciso contrariar a inércia, tão natural, e impedir o corpo de continuar dormindo. Eu concordo com a inércia. Jamais deveríamos acordar, uma vez dormindo. Como estou agora.
2h – Por que não durmo? Explicações fáceis como, “dor”, “vontade de viver”, “insônia”, passam por minha cabeça com preguiça. Aliás, “dor”, não. “Dor” não é fácil. Nem é fácil a sua constatação. Estar sem sono, pode ser, isso sim, um conforto para os olhos, que podem contemplar melhor as coisas sem excesso de luz. Assim como o pensamento, que flutua melhor na madrugada, sem os excessos, não só de luz, como de barulho, trevas, dor, estresse, correria e poluição. Na madrugada, é como se o tempo não tivesse uma trabalho a cumprir, um destino. É como se o tempo dormisse. E eu não.
4h – Já sonho com meus pais mortos. Até quando terei isso em mente? Até quando ficarei com aquele enterro na cabeça? E eu não me casei. Não sei porque, mas me sinto em dívida com eles. Mas mesmo endividado, durmo direto todas as noites, de tão cansado. Haja drinques após o expediente.
4h – Sim, pelo menos durante duas horas meu cérebro tem que apagar. Que sejam nas temíveis horas pares, aquelas em que a gente tem sempre vontade de ter os olhos fechados. Na meia-noite, por medo dos fantasmas alheios. Às duas, por medo dos próprios fantasmas. Às quatro, com medo de um dia ser obrigado à acordar. Às seis, porque todos os outros começam a acordar, e eu sou da minha opinião, ou poderia não ser – em homenagem ao Leminski – de que nada me dá mais medo do que os outros. O inferno? O Diabo não merece tanto.
6h – O despertador parece me lembrar a cada toque, me lembrar com ameaças de que se eu não acordar algo de ruim pode acontecer. O despertador é mais implacável do que uma mãe querendo que o filho vá para o colégio. Por que toda as manhãs eu lamento a necessidade que eu tenho dele? Por que só o despertador renega tanto minha própria humanidade. Do mesmo jeito que não voamos, acredito que nós também não despertamos. Não nascemos para voar (tanto que há várias doenças de avião) e também não nascemos para despertar (um dia os cientistas ainda vão descobrir que a maioria dos cânceres vêm do despertar precoce. Querem apostar?).
6h – Durmo maravilhosamente, com arte. Um pano envolve meus olhos, mas só por precaução, afinal, o quarto está todo vedado. O ar condicionado faz um barulho delicioso, e eu posso sentir que estou roncando. Descanso, descanso. Que palavra linda, gostaria de ter certeza de que é para ela que nós nos encaminhamos, apesar de tudo. Tudo é morte, nada é descanso. Deveria ser o contrário.
7h – Porra, cheguei em cima da hora. Ela já está rosnando. Por que colocam mulheres para chefiar alguma coisa? Porra, devia ser sempre homem. Mulher tem tensão pré-menstrual, o que por si só já deveria desqualificar todas elas para função de chefia. E ela me pede para fazer a mesma merda, de sempre, o trabalho que não foi feito à noite, e eu sempre tenho vontade de dizer que à noite eu só estava dormindo porque sabia que haveria gente para fazer isso, e que essa gente agora está dormindo, e que por isso mesmo eu não posso pagar por isso agora. Mas engulo essa merda toda que eu queria dizer, e desce algo até meu estômago e dá uma cavadinha, são menos três mil células em direção à úlcera e à infelicidade completa. Tomo um esporro. Engulo de novo. Desço e peço uma média com pão e manteiga. É hora do lanche. Que merda de hora tão feliz.
Meu dia começa.
7h – Sinto muito medo, porque essa sensação de queda sempre me perturba. E é somente no meio da queda que eu lembro que é sonho, mas aí já é tarde demais, já me mexi na cama, já derrubei algo que fica na mesinha de cabeceira – eu sempre durmo com a cabeça para o outro lado, onde não tem mesinha – geralmente a garrafa d´água, ou o maço de cigarros. Gosto sempre que seja o maço, porque a garrafa está sempre meio cheia. Ou meio vazia. Bom, para cair, quebrar, e fazer uma merda enorme, o que importa é que ela está meio cheia. Independente de pessimismos ou otimismos.
8h – Começo a telefonar como um idiota, as pessoas do outro lado da linha mal entendem o que eu falo e o que eu quero. Acho que é cedo demais. Deus do céu, por que o mundo começa a funcionar tão cedo? Que idiotice? Acredito que é só por causa dos operários, esses, os mais explorados. É tudo a partir deles. Os patrões querem que a produção comece cedo, para poder ser escoada logo. A partir daí, a banca que vende os jornais para os operários tem que abrir cedo, a padaria que vende os pães idem, a farmácia idem, e tudo o que está em volta dessas merdas idem, ib idem, e assim o mundo inteiro mal curte a porra da alvorada. Eu, então, nunca vi isso. Estou sempre no ponto de ônibus, mas de costas para o sol.
8h – Resolvo levantar, sem pressa, sem dor, sem despertador, sem despertar a dor de ter renascido, de morrer de mentirinha para nascer de verdade que é essa coisa chamada acordar. Mas acordo bem, e faço essas coisas que são como um acontecimento, um verdadeiro ritual de magia branca: ligar a cafeteira elétrica, colocar o pó, plugar a tomada do forninho, pegar o jornal lá embaixo, passar manteiga no pão dormido, e ouvir o Adagietto de Mahler. Após o café, abro uma cerveja para eu agüentar o jornal. É sábado. O cigarro está delicioso.
9h – Sim, somente às nove da manhã é que a gente entende que é segunda-feira. O metrô é sempre igual, não nos dá essa impressão. Na rua, se caminha como sempre, e a atmosfera é a mesma de terça, quarta e quinta. Sexta não. Sexta é diferente, há uma cumplicidade urbana na sexta-feira, um pacto tácito. Acho que até batida de trem, no Brasil, tem um acordo – se for na sexta, deixa para lá, depois a gente conta os mortos e feridos. Toda sexta tem um quê, um sorrisinho de canto de boca de que tudo está acontecendo de fachada. Já a segunda tem o comprometimento cínico de quem quer começar a semana “com tudo”, todo mundo vira “caxias” na segunda. Desde meu porteiro até o atendente do maldito McDonald´s. Minha chefe decide me fazer entender que é segunda-feira e começa a me malhar para o superior dela. Claro, ela é uma forma de vida inferior.
9h – Caminho ao longo da muralha que protege os vivos do mar calmo. Há um futuro chegando, no ar. A música do Tom diz muito, quando tem aquele verso, “é promessa de vida/no meu coração”; os sábados têm essa falsa promessa, ou melhor dizendo, essa breve felicidade. Será que não seria melhor assim, chamarmos de “felicidades breves” todas as falsas promessas? Seria no mínimo um eufemismo simpático. E poético, quem sabe. Me lembra todos aqueles presentes caros que todo mundo já deixou de ganhar no Natal. No meu caso, um autorama. Nenhum DVD ou Palm Top, nenhuma dessas merdas preencheria a vaga que um autorama tem no meu coração. É sábado, esses moleques e seus pais que cumprem todas as promessas passeam na calçada cheia de um sol patético. Um sol que eu amo, que me dá ar. Essa é a impressão.
Começo a encher o saco dessa caminhada.
10h – As segundas-feiras sempre prometem arrancar meu escalpo. Ou pelo menos as segundas fazem com que a semana demonstre o tamanho de seu desejo por sangue. Ou por carne, sei lá. As segundas são uma espécie de arauto satânico de uma semana de merda. Você sofre, pena o dia inteiro, ouve sandices, tem asco do ser humano, vê a merda da vaidade tomando conta do seu chefe, sente nojo. Nojo de ver que aquela criatura viva leva dinheiro para casa às custas de te humilhar e também de puxa o saco de um outro filho da puta. Sente nojo de ver alguém que não deveria ter parado de se amamentar na mãe dar uma de experiente. Na segunda-feira, a gente sente mais nojo ainda. Vejo-a caminhar até a sala do editor, com uma folha de papel na mão. Grandes merdas ter folha de papel na mão. Ela e o editor conversam, e eu imagino o diálogo, “para que essa folha na mão, fulana?”, e ela respondendo, “ah, é que eu vim aqui chupar a pica do senhor, e queria limpar a porra dos meus lábios com essa folha”, ai caralho, cadê Cristo que não volta? Em que merda estamos nos transformando? Ah, já estou com fome.
10h – Começo a ver alguma vantagem nesse hábito que detesto que é o de acordar cedo. O dia parece ficar grande, enorme, mais tempo para se fazer nada, para ouvir música, para beber. Eu tenho quatrocentos CDs, cara. Preciso de tempo. Se eu depender de seis horas por dia (tirando as oito de trabalho e as oito dormindo), fudeu. Não ouço porra nenhuma e chegarei ao fim da vida sem ter ouvido todos eles pelo menos dez vezes. Claro, quando considero seis horas por dia, estou fingindo que não existe o tempo de deslocamento trabalho-casa-trabalho. Ai, cacete, é casa-trabalho-casa. Ou tanto faz, para você? O dia está enorme, já caminhei, fumei, bebi, vi os casais ensolarados, vi os bebês com alguma babaquice na mão, vi a areia da praia contente porque o sol vai permitir que ela foda com os pés dos seres humanos, vi as domésticas um pouco menos escravas, vi os motoristas ruins fazendo as primeiras cagadas do dia. É sábado mesmo, ninguém está de sacanagem, é verdade. Já começo a pensar que almoço terei pela frente. Que parente, que amigo, que ex-mulher, que criatura humana tirará o dia para considerar que deve almoçar comigo só porque é sábado? Enfim, acho que vou ao fliperama. Ou então a alguma loja de CDs usados.
11h – Foram perguntar à minha chefe se já era permitido almoçar. Era um cara que tem úlcera – que nem eu daqui a uns meses – e o cara não gosta de ficar muito tempo de estômago vazio. Minha chefe lhe deu uma resposta atravessada, irônica, babaca, escrota. Meu Deus, o que as pessoas estão fazendo umas com as outras. Um ser humano acha que pode humilhar o outro e usa para isso a chantagem do emprego. “Hei, cara, você tem que agüentar tudo isso, senão não poderá levar para casa o dinheiro para pagar o leite e o videogame de seus filhos”, puta que pariu, é isso que me deram? Um ser humano assim? Sou a favor de que a legislação trabalhista não permita que se demita por justa causa todo ser humano que tiver a coragem suficiente para encher o próprio chefe de porrada. Aliás, devia ser proibido demitir quem faz isso. Todo aquele que enche um chefe nojento de porrada deveria ser condecorado – porque é um herói, que luta para salvaguardar os culhões humanos, a honra, o sangue, a fé, o amor, a paixão. Um cara que mata o chefe de tanta porrada é a nossa salvação, nossa ligação com Deus. Cristo voltará como escriturário. Ou como repórter. Vai nos contar tudo dessa vez.
11h – Por que eu não escolhi uma loja de CDs normal? Tive que vir em uma de shopping? Ah, mas tudo bem. Talvez eu faça tudo aqui. Almoce, vá ao fliperama (não se usa mais esse nome, agora é sempre “games” ou “works” alguma coisa), e quem sabe ao cinema. Filme em cinema de shopping é sempre escroto. Ah, mas no fundo eu gosto é dessa liberdade. Ninguém me acha. Compro “Eat a Peach”, dos Allman Brothers. Aproveito e compro também o “Kind of Blue”, do Miles Davis, que sei lá por que cargas d´água eu ainda não tinha. Coloco no débito automático; ou no cartão? Sei lá. Só sei que hoje eu posso ter um autorama e não compro a porra de um autorama.
Tinha que ser naquele momento, que eu pedi. Meu pai nunca explicou por que não deu. Eu sei que foi por não ter dinheiro na época, mas ele poderia ter explicado, sei lá. Porra, também não ficaria nunca com raiva dele por causa disso. E nem fiquei.
Mas ainda terei um dia a alegria que eu nunca experimentei, que é o dessa merda desse autorama.
12h – Vai tomar no cu, sua filha de uma puta, é o que eu tenho vontade de dizer a ela. Vou almoçar e foda-se. O refeitório abre meio-dia, e eu tenho fome. Se eu pegar canelone, não posso pegar a carne assada. Uma colherada apenas de feijão – não é uma colher, é uma concha. Vou colocando tudo, salada, arroz, feijão, para ganhar tempo e decidir se eu quero carne ou canelone. O refresco é de maracujá. Uma merda. A sobremesa é quindim em pedaços, eu pego. E lá vamos para o maldito bicarbonato que eles colocam no arroz. Vejo os caras ricos da empresa chegando para almoçar no refeitório. Ainda não estão desalinhados simplesmente porque é cedo demais, meio-dia e eles não fizeram porra nenhuma, nem para a mãe deles. Aliás, para a mãe deles eles nunca fizeram merda nenhuma. E eu estou ralando desde as oito da manhã. Ou sete? É, hoje eu peguei às sete. Que bom, três da tarde já posso pensar em me mandar dessa merda.
12h – Peço dois chopes, o primeiro para eu virar, o segundo para saborear enquanto olho o cardápio. Está muito quente na cidade, minha sede está gigantesca. Odeio comer em shopping, mas me rendo à preguiça e à praticidade. Ontem uma garota me disse, “tem que haver praticidade na beleza”, eu nem entendi porra nenhuma porque estava bêbado. Acho que ela estava me explicando porque as mulheres gostam do Chico Buarque. É verdade, tem praticidade. A gente no fundo sabe que elas gostam porque o cara é bonito e ponto final. Isso é que é foda. Os intelectuais vibram, dizendo que elas gostam de um algo mais, mas é cascata. Fosse o Chico Buarque, com todas aquelas letras, a cara do Nestor de Montemar ou do Wilson Grey, queria ver. Foda-se. Peço uma porção de frango à passarinho. Sou livre até para não almoçar. Só porque é sábado. As horas saltam.
14h – Ainda estou escrevendo algumas notas. O cigarro depois do almoço, quando fumado com pressa, é uma merda. A sobremesa fica encravada entre os dentes, por mais que você escove com todo o cuidado. O bicarbonato, maldito bicarbonato, que estava no arroz, domina o ambiente, todo mundo arrota a porra do bicarbonato. Dizem que eles colocam para dar a sensação de enchimento, mas depois o bicarbonato facilita a digestão e aí você está com fome de novo. Mas deve ter algo conspiratório, de patrão. Deve ser melhor o empregado digerir logo, senão fica aquela indolência jiboiana, e aí já viu, fudeu, o cara não produz. Ele é o dono, ele pensa melhor. Ele sabe que um danoninho vale por um bifinho. Ai, caralho, minha chefe não sabe que um lexotan vale por um abraço. Tome mil, sua filha da puta, e vá de trem-bala para o inferno. Será que o diabo merece isso?
14h – Como é delicioso fumar um cigarro sem que a vida me obrigue a levantar. Pago a conta só de sacanagem. Fico sentado na mesa. Quanta merda passeia nesse shopping. E eu assim, querendo me ver livre de tudo. A Mega-Sena é a grande ambição do fim de século. Ninguém quer mais trabalhar. Sabe de quem é a culpa? Dos chefes escrotos. Se o ser humano se resolvesse, o trabalho seria uma felicidade.
Ah, meu trabalho só seria feliz se alguém me chupasse o pau todos os dias, lá dentro, enquanto escrevo alguma merda.
Minha chefe, com certeza, torceria para eu ganhar na Mega-Sena. Eu daria a ela, de presente, com todo carinho, um jazigo perpétuo.
16h – Que vida é essa, que nos obriga a, todos os dias, ficar experimentando extremos? O máximo de dor, de tristeza, de angústia, de sensação de fracasso, quando eu chego, de manhã e olho aquele rosto nojento de réptil, daquela mulherzinha repugnante, que sonha com pica todas as noites e jamais se realiza. E, de repente, a liberdade por umas seis horas, até eu me enredar na prisão do sono, até levantar para outro dia, até completar onze, doze meses no emprego e poder ficar um mês sem trabalhar, viajar, fazer alguma merda, ou não fazer nada, e aí voltar para o emprego, me dedicar à máquina em tempo integral. E um dia serei um velhinho, desses que os jovens se levantam para dar lugar no metrô, desses que as mulheres não levam a sério (elas já não me levam a sério), um velhinho filho da puta, que sofreu muito, na mão dessa mulher, na mão de várias mulheres, na mão da humanidade, na mão perversa da humanidade. Não quero mais essa humanidade desgraçada, quero ser um coiote nojento, me alimentar da carniça de todos eles mortos.
De repente, o vento do final da tarde me deixa feliz, e eu não quero mais ser um coiote, sim, quero continuar nessa prisão, desde que me deixem dar uma volta no pátio todo dia. Com a corrente e a bola.
16h – Começa o jogo, o Flamengo está todo desfalcado. Mas pelo menos dá para recuperar depois, o foda é o calor de Moça Bonita. Se empatar, ainda dá para a gente chegar na semifinal, o Bangu está querendo dificultar o jogo. Paciência. Talvez ainda dê para virar. Não sei se eu sou da mesma linha – que clichê absurdo, “virar o jogo”, que lugar-comum, mas o que que se faz da vida, afinal? Começo a pensar na noite, e de vez em quando me vem a sensação de inutilidade completa. Basta somar duas músicas: aquela que diz “a noite vai ser boa/de tudo vai rolar”, e uma outra pretensiosamente sensual que reclama, “solteiro no Rio de Janeiro/parado em qualquer praia/sou solto em qualquer lugar/tira a camisa/esse calor ta de amargar”, que me vem a sensação de não ter mais estômago. Talvez seja essa a resposta, o fim do estômago, abaixo o discernimento. Eu devo fazer parte do mundo dos feios, porque não vejo o que seria esse “de tudo vai rolar” e mesmo não aceito esse negócio de tirar a camisa ter relação com ser solteiro. Quanta babaquice. Mas pelo menos o Flamengo vira a porra do jogo. Meu tempo não foi em vão. Meu tempo não é quando, meu tempo é nunca. Adeus ao nunca. Across the universe. Jai guru dev a om.
18h – Uma vez li um livro, “Feliz ano velho”, do cara que fica paraplégico e diz que só queria sentar no banco de trás do ônibus e sentir o vento batendo no rosto. Eu detesto ônibus, mas pego um depois que salto do metrô, e sinto a brisa me mandando embora para outro mundo. Me dá vertigem ver mais um dia indo embora, e nessas horas sinto sempre o trabalho diário como sendo mais uma etapa em direção a lugar nenhum. Vocês me acham muito deprimido? Porra, é que eu percebi – não sou melhor nem pior, apenas percebi. Tenho medo até de falar nessas coisas. Tento então nesse tempinho entre o abrir desesperado dos grilhões e o trancafiar insuportável do sono, fazer a vida valer a pena. Escolho um CD, olho os filmes da TV, fumo, bebo, pensei até em rezar. Há quanto tempo eu não rezo, Deus, desde a última vez em que ouvi “Remember”, do Hendrix. Será que rezei naquele dia? Quando tive vertigens de morte aos 19 anos, um psicoterapeuta me perguntou, com a voz bem paternal, “você reza?”, e eu não sabia responder. Talvez porque ele estivesse me dando uma resposta. Orai, orai, que o Deus vai me fazer esquecer da morte. Eu só quero isso Dele. O resto de mim é Dele. Se sobrar algo. O Diabo não merece tanto.
18h – Uma vez li um livro de Carlos Castañeda – todo mundo tem que ler um dia – e vi uma frase maravilhosa: “O Crepúsculo é a fresta entre dois mundos”. E descobri nesse dia que fresta é uma palavra muito agradável. Não é para menos – nascemos por uma, pois não? E metemos em uma para esquecer da morte. Fresta é uma palavra molhada, você saliva a língua para falar. Eu resolvo é ver a Lagoa, com esse sol começando a pensar em se pôr – maldito horário de verão – e um monte de gente percebendo isso, se reunindo para ver o espetáculo como se ele não fosse diário. Mas não estaria aí a fórmula? Dizer a si mesmo ao acordar que não existe o diário? Que a morte ou a sorte pode estar na próxima esquina? Prefiro a Mega-Sena do que um jazigo perpétuo. Acho que já pensei nessas coisas essa semana.
20h – Todo dia tem Jornal Nacional. Principalmente hoje, segunda-feira. Todo dia não. Domingo não tem. Mas domingo é o dia mais foda, todos brigam com foices para decidir quem vai enfiar a pica dentro do seu cérebro molhado e gostoso, parece que o seu cérebro anda de espartilho, rebolando, querendo quem o domine. Que merda, o domingo. Ainda falam mal do futebol. Quero é mais cem gols do Rondinelli para esquecer um mísero Faustão. Quero dez replays de gols de falta do Zico para enfiar no rabo de todo mundo a musiquinha do Fantástico. Quero que os patrocinadores da videocassetada se fodam. Ah, e quero um domingo de Páscoa em que alguma ex-namorada reapareça e me dê um coelho de chocolate e um beijo na boca. Tudo bem, sem beijo na boca. Mas do coelho eu não abro mão.
20h – Caralho, às vezes esqueço que sábado também tem Jornal Nacional. Mas pelo menos têm as notícias da Fórmula 1 do dia seguinte. Ah, ainda não começou a temporada. Foda-se. Desligo e coloco um som muito porrada. Nirvana. O porteiro interfona. Os vizinhos dão um churrasco. Todos me deixam recado na secretária eletrônica. Sim, sim, é sábado mesmo. Eu não sabia, juro que não sabia. Pelo amor de Deus, não me batam. Eu sou só um moleque com medo, com um medo filho da puta de gente grande e crescida. De gente que faz cálculo de imposto de renda – desde criança que eu vejo uma superioridade quase genética nessa gente que sabe fazer o imposto de renda. Quase padres. Se pelo menos se masturbassem, seriam.
22h – Cervejas que somem. Ficam três garrafas vazias na pia, e mais uma que passará a noite a meu lado, na cabeceira, e meu pé provavelmente a derrubará no pior dos pesadelos. Mas só bebendo para poder dormir decentemente, sem interrupções. É difícil dormir sabendo que terei de acordar para um dia simplesmente filho da puta. Sabendo que contarei mais alguns dias para a pausa quase existencial da noite de sexta. Sabendo que na verdade estou ali para morrer, ou pelo menos para só sair dali quando o que eu ainda tiver de vida tiver se exaurido – como fazem com os cachorros. E de vez em quando, quando eu sou um bom cachorro, eles me atiram um osso, e eu fico realmente contente, pulo, sorrio, quase bato palmas, e deixo os outros cachorrinhos morrendo de inveja. Ah, isso é Pink Floyd, The Wall, “When i´m a good dog they sometimes throw me a bone in”, da mesma música em que o cara fala que tem 13 canais de merda para escolher. Ou seriam trinta? Saberei amanhã, quando eu acordar e só querer saber de pegar o metrô.
22h – Olho a programação de filmes. Quem sabe não passa “O Tesouro de Sierra Maestra”? Ou mesmo “Duelo ao sol”? Queria ver um desses westerns heróicos. Há quanto tempo não vejo heroísmo! E nunca pensei que um dia sentiria falta dessa porra desse heroísmo! Só vejo anti-heróis, onde quer que eu procure. Talvez não haja mais heróis assumidos porque no fundo, no fundo, ninguém quer mais salvar ninguém. Estão todos fudidos. Acho que vou dormir, sabe. Apesar de ser sábado, e todos quererem aproveitar a noite, fazerem sexo ou alguma coisa parecida. Eu quero aproveitar o sono. Tão bom como trepar e comer. Dormir. Apagar a consciência das coisas.
0h – Acho que voltarei a rezar. Nos extremos, nos pontos zeros, só nos resta pensar em Deus. Não, não sou eu, desculpe.
Amanhã é o quê?
DEDICADO A ROBINSON CRUSOÉ, AQUELE QUE MELHOR SOUBE BATIZAR SEU ÍNDIO
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