02 março, 2003

Crônica de uma cidade - uma história verídica
O bairro, Penha, Zona Norte do Rio. Conhecido por ter uma igreja no alto do morro, com uma escadaria onde devotos pagam promessas. A rua, próxima, apenas próxima, de um dos violentos morros do bairro. O personagem, um humilde técnico, casado, pai de dois filhos, que juntou 50 mil reais de FGTS e economias, a vida inteira, para comprar uma casa no subúrbio, com quintal e quarto no andar de cima. Era em frente ao morro, mas com o dinheiro que ele juntou trabalhando metade da vida, era o máximo que ele podia comprar.
Noite dessas, os filhos estavam passando o fim de semana na casa da avó, ele em casa, lendo, estudando, tentando melhorar de vida. Luz de abajur acesa em um pequeno escritório. De repente, alguém bate à porta, mas à porta da casa - não no portão. O que significa que, quem bateu, pulou o muro; ele vai e abre a porta, só ouve a frase:
- Põe a mão aí, põe a mão para algemar.
Sem entender nada, entra na casa, os três bandidos empurrando, perguntando quem mais está na casa.
- Minha esposa.
- Chama ela aí.
- Mas ela tá dormindo, tá de camisola....
- Ô DONA...como é o nome dela?...Ô DONA FULANA, DESCE AÍ, A GENTE QUER FALAR.
Enquanto isso, o rapaz oferece as mãos, que são algemadas. Um dos homens armados - os três com pistolas e fuzis - está com um colete da Polícia Civil. Mas vê-se logo que não são policiais. A esposa desce, assustada, em pânico, aliás. Sem entender nada, ainda sob sonolência.
O líder deles pede a palavra:
- Por que que a luz estava acesa?
- ...
- Não sabe que tem que apagar a luz às dez horas? Não sabe que a gente é que manda aqui?
- Desculpe, eu pensei que estava longe do morro.
- Tá longe, mas a rua inteira é nossa. Não sabe que tem que apagar a luz? De quem você comprou essa casa? Cadê a escritura? Traz a escritura e a carteira de trabalho, agora.
Ele traz a escritura, a carteira de trabalho.
- Ah, você trabalhou na Telerj? Vai servir muito para a gente. Ah, a pessoa que te vendeu essa casa é um grande funcionário nosso, devemos muito a ele, ele deveria ter te avisado das regras.
Os homens passam uma série de ordens a serem cumpridas. Luz apagada, não pode festa dia tal, não pode gente de fora sem autorização, não pode subir o morro sem autorização, tem que ceder espaço para o pessoal do morro que precisar de hospedagem.
- Você tem carro? Você vai ser muito útil mesmo.
A ordem seguinte: grampear TODOS os orelhões da rua. Absolutamente todos - já que ele é ex-funcionário da Telerj, pode fazer isso tranqüilamente.
- Olha, a gente vai embora. Agora, como a gente é "amigo", vamos sair sem precisar pular o portão, e voltar quando quisermos. Amanhã vem um rapaz aí com uma lista de tarefas para você fazer.
No dia seguinte, vem a lista. Quando o bandido disse que o carro seria útil, era o seguinte: ele teria que ser motorista do tráfico. Dirigir para eles, levando droga, talvez corpos.
Não teve dúvidas. Com o coração partido, pegou o carro, algumas roupas, alguns poucos pertences, as coisas que mais estimava, passou em outro bairro, bem longe, pegou os dois filhos, botou dentro do carro. Com uma parte das economias, encheu o tanque de gasolina e partiu sem rumo, deixando para sempre, para nunca mais voltar, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Para sempre. Hoje, vive em outro estado. Sem saudade. Ou melhor, com saudade de ter saudade.

Sim, se assustem: esta é uma história verídica. Os nomes, obviamente, omitidos, trocados.