03 junho, 2002

O sono
Deve ter sido de propósito - por exigência de algum órgão regulador, tipo a ANATEL - que Deus colocou no ser humano uma peça que obriga a "parada para manutenção" por oito horas seguidas. O que nos torna péssimas máquinas, pois imagine se um servidor de rede ou mesmo um Caixa 24 horas demandassem o mesmo tempo e a mesma freqüencia em suas paradas? Os fabricantes com certeza iriam à falência. Bom, Deus também não deve estar nadando em dinheiro, pois andou sendo bem contestado ultimamente - além de ter arrumado um sócio, o Macedão, que fica com toda a grana.
A muitas pessoas que conheço, o sono irrita. Quer dizer, não o ato de dormir, mas sim sua obrigatoriedade. Ouvi falar certa vez que um tipo de tortura consiste em ficar toda hora iluminando os cornos do freguês de modo a impedir seu sono. Bom, acho meia verdade. Comprovei hoje no trabalho, enquanto confeccionava a ficha técnica de Inglaterra x Suécia, que nem palitinhos de bambu impediriam o meu total adormecimento na hora em que comecei a ver a escalação escandinava: Svensson (dois até), Ericsson, Alexandersson, Larsson. Deu son, quer dizer, sono.
Minha teoria é a de que o cara que completar 30 horas sem dormir, sem apagar um instante que seja, passa a ter a nítida sensação de ser capaz de ir ao próprio enterro - e ainda contar a última do português. E acho que isso tem lá sua razão de ser, quer dizer, a Anatel que regulava as atividades de Deus naquele tempo (uns poucos segundos antes do Fla-Flu, que segundo Nelson Rodrigues começou quarenta minutos antes do nada) colocou no contrato "A criação terá uma parada técnica para não pirar de vez".
Deus ainda tentou burlar a legislação criando coisas que ajudam a criação a burlar o sono, como a cocaína, a cafeína, a água gelada no rosto e a prorrogação com morte súbita. Mas a rigor não tinha muito jeito.
O que, na verdade, acabou sendo benéfico - se notarmos bem, uma boa noite de sono bem dormida realmente faz a manutenção. Muitas vezes a gente dorme pensando "a mulher da minha vida me abandonou, uma doce afrodite, inexpugnável, linda, que eu amo", e acorda refeito, dizendo, "depois eu ligo praquela bruaca". Podem experimentar. O sono é um estado de embriaguez que conduz ao romantismo. Basta a gente dormir que os sentimentos podem depois ser conduzidos para onde a gente quiser. Ou não, sei lá.
Só sei que esta manipulação do sono que venho praticando, depois que passei para o horário coreano, tem me ensinado algumas coisas. A principal é: o mundo não te acompanha quando você inverte os horários - em outras palavras, é confuso acordar, fazer o café, colocar torradas no forno e, ao ligar a televisão, dar de cara com o "Show do Milhão".