No ônibus
Um pano vermelho atrás do motorista exibia a frase: “O volante é um troféu nas mãos de um herói sem valor”. Lá atrás, a trocadora era uma senhora, loura, de óculos, com a voz um pouco grossa e muito educada que dava “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a todos que entravam, sem exceção. O ônibus é daqueles que demoram uma eternidade, então os passageiros são sempre os mesmos em seus horários e a trocadora conhece todos. Entra um vendedor de tesourinhas de unha pela porta da frente.
- Senhores passageiros...- aquele blá blá blá de sempre. Ele vai lá para trás e desata a conversar com a trocadora. Desistiu de vender:
- Oi minha amiga! Você andou desconfiando de mim outro dia, né? Eu não conheço aquele motorista, não. Ele estava perguntando outra coisa, nada a ver com você. Posso lhe dar um beijo?
Ela cede a bochecha.
Assunto vai, assunto vem:
- Eu estou quase trocando de ramo, querida. Não vou mais vender dentro de ônibus.
- É mesmo? Vai fazer o quê?
- Sabe, eu era vendedor de antenas parabólicas. Não deu certo, vim pro ônibus. Eu me dou muito bem dentro do ônibus, falo bem, porque tem cara que não sabe vender, não sabe lidar com o público e nem como deve abordá-lo. Mas eu sei, porque é uma coisa que eu gosto de fazer. Então, outro dia eu estava trabalhando e um cara me chamou e disse: “ei, acompanho você há um tempo nesse ônibus, você me ensinou a vender". "Eu?". Agora quero lhe propor que venha fazer um curso para trabalhar comigo”. E eu fui, é lá na Barra, no Downtown. É um curso sobre purificadores de água que acabam com 99% das bactérias da água.
- Que legal!
O articulado vendedor se senta.
(Pela primeira vez encaro a venda no ônibus como algo realmente sério, não como um bico).
Entra um garotão de dois metros de altura. Cumprimenta a trocadora e fica em pé ao seu lado, conversando. Cabeça abaixada para não bater no teto, reparo-lhe os pés. Uma lancha. É tímido, o garoto. E parece desconfortável dentro daquele corpo tão grande.
Um outro garoto entra. A trocadora toma ares de mãe e briga:
- Ô menino, você não deveria estar na faculdade?
- Ah, estou matando aula.
- Mas vai pra outro lugar? Então você deveria avisar a sua mãe. Onde já se viu. Quando a gente põe os pés fora de casa nunca sabemos o que pode acontecer.
- Celular foi feito pra isso, pra me localizar onde eu estiver.
- Mas você não tem juízo, hein? E se esse ônibus fosse o 174 e entrasse um maluco pela porta da frente e sequestrasse o ônibus?
- Como você quer que eu tenha juízo? Eu tenho 21 anos.
O vendedor de tesourinhas grita para a trocadora um pouco mais da frente:
- O ex-governador Garotinho está morando aqui, agora, sabia amiga?
- Ex-governador?
- É. Ex-governador, o Garotinho. Agora a governadora é a Bené, negra e favelada como eu, você não sabia?
- Ah, é. Você vai votar nele pra presidente?
- Eu vou.
- Ah, eu não vou não. Cambada de ladrão.
E o garotão de dois metros:
- Não vota nele, não.
A moça que estava quieta:
- Não, no Garotinho, não.
O desajuizado de 21 anos:
- Eu vou votar no Lula.
E o vendedor de tesourinhas:
- Mas o Garotinho se preocupa com o povo, não viu o piscinão e o restaurante popular?
A trocadora:
- Você já foi lá? Então deveria ir, porque eu já fui, é um pinicão, uma vergonha.
A moça ao meu lado perguntou se eu conhecia a Rua General Glicério. É mais ali adiante, respondi.
A conversa estava animada, mas eu desci. Cheguei em casa e não tinha o que escrever, saiu isso.
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