Pressão alta e câncer de pele
Gostei tanto da coluna de hoje do Eugenio Bucci, no Jornal do Brasil, que estou copiando aqui pra quem não leu:
"Eu me lembro de um poema de Cecília Meireles sobre as escolhas. Chama-se Ou isto ou aquilo. São versos bem conhecidos, que aparecem nos livros escolares logo no ensino fundamental. Começa assim: ''Ou se tem chuva e não se tem sol/ ou se tem sol e não se tem chuva!''. Outra passagem: ''Ou guardo o dinheiro e não compro o doce/ ou compro o doce e gasto o dinheiro.'' Cecília parece falar a uma criança, mas, todos sabemos, opções de crianças, que são duras, ficam piores ainda quando a gente cresce. Por exemplo: devo cometer o suicídio agora à tarde ou deixo para domingo à noite? Ou: beijo a boca que me sorri ou sorrio para a boca que me quer beijar? Finjo que não vejo o crime que vejo ou me convenço de que não há crime algum no que estou vendo? Isto ou aquilo?
Não é fácil. A própria Cecília termina sem saber o que é melhor, ''se isto ou aquilo'', e eu também não sei. Nem me preocupo muito. Não adianta. A pior escolha é a que a gente acaba fazendo: aquela de não escolher coisa nenhuma e ir andando na esteira rolante, no trânsito, no emprego, na escola, na igreja, ir andando por estes parágrafos estranhos e inexplicáveis.
Ou melhor: essas digressões, ainda que estranhas, não são de todo inexplicáveis. Elas vêm me puxar os pés durante a noite porque foram provocadas. A culpa é dessas campanhas de saúde, inventadas pelo governo e pelas entidades médicas, que ficam aí martelando nas emissoras de rádio, na televisão, nos outdoors. Esta semana mesmo, anúncios me mandam medir a pressão. Tenho mais medo de aparelho de pressão do que de dentista. Dizem as campanhas que não-sei-quantos-porcento das mortes são causadas por essa doença, a pressão alta. Meça sempre. Catorze por nove. Nunca acima de catorze por nove. Dois números contra as minhas palpitações. Os médicos falam sua fala. ''Pratique caminhadas'', recomendam, e eu me rendo a tal ''prática'' enquanto penso no absurdo vocabular que aí se encerra. ''Pratico as caminhadas'' e transpiro ao sol da manhã, o que seria apenas um tédio saudável se não fosse a outra campanha, aquela contra o câncer de pele. O sol faz mal. O sol mata. O que faço eu? Nada mais simples, argumenta o dermatologista, ''proteja-se com um bom filtro fator trinta'', e lá vou eu correndo para a farmácia, pela sombra, enquanto penso no atropelo de substantivos que há na locução ''filtro fator trinta''. A voz médica ameaça: o ideal, claro (ou escuro), é ''não abusar dos raios solares''. O que tira toda a graça da ''prática de caminhadas''. Ou bem paro de ''praticar as caminhadas'' e não tomo mais sol cancerígeno, ou bem tomo sol e câncer. A ''proteção'' me soa impraticável. O ''filtro fator trinta'' deve ser besuntado sobre a face e também orelhas pelo menos (PELO MENOS!) quarenta minutos (QUARENTA!) antes (ANTES!) de ''a pele ser exposta aos raios etc etc''. Brincou. Nem a República brasileira foi planejada com quarenta minutos de antecedência. Parece uma inconseqüência da minha parte, mas não dá. Pra mim não dá. Concluo que há uma escolha grave a ser feita na idade adulta: ou se quer morrer do coração ou se quer morrer de câncer. A minha eleição continua sendo o suicídio embora, a essa altura, eu já tenha adiado o meu para o domingo à noite. Vejo o No limite antes e me animo.
O poema de Cecília Meireles, em sua simplicidade, deixa ver que as escolhas, pobres escolhas, não são exatamente decisões autônomas de seres emancipados que, heroicamente, criam seus próprios destinos e escrevem seus futuros ao som das trombetas. Uma escolha é menos gloriosa. É somente uma adesão patética a um discurso pronto. Ou se calça a luva ou se põe o anel (lembrando outro verso de Ou isto ou aquilo). Escolher não é se libertar. É apenas subjugar-se a um ou outro estilo que já vem definido antes de você. Como a luva. Como o anel. Os médicos e suas falas peremptórias são assim. Os discursos que eles falam os precedem e também os ultrapassam. Às vezes vejo no médico não o portador da salvação mas o portador modesto do discurso que o comanda. Nessa perspectiva (e só nessa perspectiva), a medicina não é uma ferramenta para a cura, mas a cura é que serve de cimento para o edifício ideológico da medicina. Vem daí, talvez, o senso de disciplina, ou melhor, de obediência, que caracteriza todo tratamento. O discurso médico assume o poder sobre a rotina do paciente: nenhuma cura é democrática. O tratamento decreta o estado de sítio em nosso corpo. Assim, com a licença de toda a boa intenção de todos os médicos, boa intenção na qual eu acredito, de coração, de pele, e, às vezes, de joelhos, posso dizer que o objetivo do discurso médico, para além de salvar vidas, é instaurar sobre o mundo a ordem tirânica da medicina.
Trata-se de uma utopia totalitária, de monitoramento permanente. O problema é que eles, os discursos médicos, são com freqüência contraditórios. Ou sigo o oncologista e negligencio o cardiologista, ou obedeço o ortopedista e dou uma tapeada no meu psiquiatra. Como escolher? Os subdiscursos das especialidades médicas seguem em disputa para dentro do meu corpo. Marcapassos, próteses, psicotrópicos, sondas e implantes vão agir por minha carne adentro para adequar-me à sobrevida pela qual serei grato e servil até que os olhos da morte, como um castigo, venham me descobrir outra vez, em flagrante desobediência. Meu corpo é um pobre campo de batalha. Como escolher?
Cecília Meireles que me acuda. ''Quem sobe nos ares não fica no chão/ quem fica no chão não sobe nos ares.'' Eu ouço as campanhas em prol da minha saúde, eu vejo nelas a felicidade medicinal e me sinto descarnar."
(Eugênio Bucci)
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