A escada de testículos
Nesta noite de segunda-feira, voltando de ônibus da casa dela (dentro da minha reestruturação financeira, é importante passar uns 50 minutos esperando ônibus e mais 20 de viagem para poupar preciosos dez reais), não sei porquê, comecei a pensar em um tipo muito peculiar de ser humano: o puxa-saco.
Geralmente, fica-se ofendido quando se ouve isso de alguém. Ninguém é. Como disse um dia Roberto Da Matta, "no Brasil não tem preto nem direita", referindo-se ao fato de que, na época (1989), havia uma moda de se dizer "pardo" e os direitistas eram todos "de centro" (vide o "Centrão" do Roberto Cardoso Alves, deputado paulista morto em 1997 e que instituiu o famoso "é dando que se recebe" na Constituinte de 1988).
No Brasil, pelo raciocínio de Da Matta, não tem puxa-saco.
Mas me lembro de alguma publicação údigrúdi ter instituído, no segundo período mais negro de nossa República democrática (o primeiro foi Sarney), o prêmio "O Puxa-Saco do Mês". Foi na época dos primeiros meses de governo Collor de Mello, em 1990.
Ou foi na Casseta ou foi no Pasquim. Mas teve.
Pipocavam cartas de todo o país, com recortes de jornais, textos, indicações, era uma festa. As pessoas que sacavam isso ficavam impressionados. Era um tal de vereador querendo dar o nome do Collor para coreto, secretário querendo inaugurar sala de hospital, bispo querendo fazer missa pro presidente, enfim, um bando de lambedores de testículos capazes de deixar o Fagundes, personagem do genial Laerte, completamente envergonhado.
Aqui no Rio tinha o Ibrahim Sued, que apelidou o Collor de "Demolidor". Me lembro de uma triste nota: "Já derrubou a Inflação! E agora, qual o próximo alvo, Demolidor?!"
Triste República.
E olha que isso depois que o Collor já tinha demolido a poupança de centenas de milhões de brasileiros, gente que rala em marcenaria, alvenaria, no esgoto e o escambau - não gente que "cresce dentro de empresa" como muitos bostinhas que se acham no direito de avaliar a vida dos outros.
Mandou pra puta que o pariu o sonho de milhões de brasileiros e além de tudo não demoliu a inflação porra nenhuma - talvez o único mérito dele tenha sido abrir as portas do país para o exterior, começando a detonar a lei de informática e aumentando a integração. Mas isso qualquer um teria que fazer, àquela altura do campeonato.
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Me lembro de um gerente de McDonald´s, recebendo o repugnante presidente, com todas as mesuras e rapapés. O cara serve ao Collor um Cheddar McMelt e um suco de laranja. Collor, demagogo como nunca, ainda faz questão de pagar o lanche.
Aí o gringo finaliza, "estamos investindo para abrir mais não sei quantas lojas e gerar 20 mil empregos". Uia. Genial. Ele poderia, na época, ter traduzido para "estamos colocando mais lojas para encher o rabo de dinheiro usando uns 20 mil brasileiros que vão ganhar um salário de merda assando o rabo durante seis horas em uma chapeira e agüentando reclamação de 'consumidores conscientes'"
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Mas estou fugindo do assunto.
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Há algum tempo, acontecia de alguém razoavelmente próximo a mim dizer que "eu não subi na profissão porque não sou puxa-saco".
A tese é inválida. Conheço dezenas de bons colegas, cito-os na hora para qualquer um, que ganham hoje salários de mais de R$ 2 mil sem terem jamais aparado as costeletas escrotais de chefinhos e editorezinhos. Vários mesmo.
Talvez não seja a minha profissão mesmo - não fui bem, e pronto, e foda-se. Errei. Agora está meio tarde para voltar, mas sei lá, de repente um projeto aí dá certo, eu meio que mudo sem mudar.
Mas percebi que realmente não fui puxa-saco. Mesmo no meu atual trabalho, onde me dou razoavelmente bem com o andar de cima, volta e meia rolam porradas homéricas. Faço questão.
Em um jornal que trabalhei, aconteceu de eu estar trocando emails com um colega dentro da redação. Em dado momento o cara me perguntou porque eu estava tão irritado, e eu respondi, me referindo ao editor: 'É por causa desse babaca desse neurótico de guerra que está me enchendo o saco com coisinhas pequenas, ridículas, mesquinhas".
Só que, distraidamente, digitei rápido o nome do cara no "send to". E mandei. E nem percebi.
Daí a pouco, vem a resposta: "Quem é o neurótico de guerra?".
Sim, hoje percebo que se eu fosse puxa-saco eu teria aberto a guarda, entregado a rapadura, pedido desculpas, sei lá. Mas respondi: "É você, porra."
E daí para a frente rolou a discussão. Eu ainda trabalhei no local por mais seis meses.
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Outro dia, três amigos meus estavam conversando em uma redação, passou uma ex-chefe minha, ouviu meu nome sendo citado e lançou a seguinte frase: "Ah, vocês estão falando do Gustavo de Almeida? Fala para ele que eu sei que ele falou de mim num texto tal, etc, etc".
É outra de quem eu nunca puxei o saco. Talvez por isso tenha achado que eu estava escrevendo sobre ela. Eu definitivamente não lembro de jamais ter escrito nenhuma linha sobre aquela senhora - mas, sei lá. Como diz o louco da piada, vai ver foram outros dois.
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Existem os puxa-sacos como eu poderia ser - um repórter de categoria inferior tentando puxar o saco de um editor. Um funcionário público qualquer de gabinete. Esses seriam assim os escaladores do primeiro degrau da escada dos testículos. Nem deveriam ser levados em consideração, afinal, estão lutando por um aumentinho de 200 paus (para mim, salvaria uma vida), ou um horário melhor, enfim, lutando por aspectos comezinhos da profissão.
Agora, com minha experiência, garanto: não existe NADA pior do que o puxa-saco Nível Intermediário. Aquele que já é sub-chefe, ou chefe de seção, e que vai lá na sala do Picão vender a alma do funcionário pro diabo.
Aquele que diz pro Picão, "ah, a gente não precisa de dez funcionários, podemos cortar uns cinco e o restante faz o mesmo trabalho".
Esses são os maiores escaladores testiculares que existem.
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Como vejo o fenômeno do puxa-saquismo se espalhar tanto (hoje vi uma matéria em um jornal de esportes em que o repórter conseguia puxar o saco do Zé do Gol, chamando-o de Bom Baiano - não tem nada mais chavão e puxa-saco que chamar baiano de Bom Baiano), em todos os níveis e escalas, gostaria sinceramente que alguém escrevesse um tratado, a exemplo do que o Guilherme Figueiredo fez com os chatos, na década de 60.
Se alguém rico ou poderoso precisar de ajuda para fazer um livro desses, pode contar comigo. Chefinho. Smack.
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