15 agosto, 2002

As almas negras
Mandei para Marcele a letra de "You are the sunshine of my life", do Stevie Wonder, numa espécie de serenata virtual. Depois de ficar pensando nela (como se eu já não fizesse isso o tempo todo), parei mais uma vez para refletir sobre a musicalidade e o gênio deste extraordinário compositor/músico/cantor negro. E me toquei de como os cantores negros acompanham minha vida, em muitas vezes salvando-a. Aqui vai portanto mais uma lista:
Os dez cantores negros mais cheios de alma de todos os tempos
1-Ray Charles - Esse é top de linha. Não tem para ninguém. Sua carreira gigantesca se divide, na minha percepção, em três fases: uma primeira voltada para o blues e o soul e a segunda, posterior, calcada no country e no folk e a terceira em que ele emplaca sucessos como "Georgia on my mind", "(Somewhere) Over the rainbow" (lindíssima interpretação, que faz parte da trilha sonora do filme "Sleepless in Seattle", com Tom Hanks e Meg Ryan) e "You don´t know me". Das outras duas, destaque para o eterno rock "What´d i say" e o country comovente "Crying time" ("babe, it´s crying time again/You´re gonna leave me"). Um Deus.
2- Otis Redding - Se não fosse existir Ray Charles, este seria o mais extraordinário cantor de todos os tempos. Quer dizer, dos negros. Convém não esquecer o mafioso Sinatra. Mas Otis, morto prematuramente em um acidente de avião em 1968, consegue aliar em sua voz o tom rouco e o aveludado ao mesmo tempo, de forma tocante. Havia uma época, em que eu andava meio para baixo, que eu costumava levantar de repente das mesas dos bares, e me despedir com uma declaração extremamente boiola: "Vou para casa, um homem vai cuidar de mim, e o nome dele é Otis Redding". E ao chegar em casa, meio mal, deitava, colocava "These arms of mine", "Try a little tenderness", "I´ve been loving you too long", "Cupid" e "Sitting on the dock of the bay" nos headphones, e de repente tudo ficava bem. Sim, com Otis Redding tudo ficava bem.
3- Marvin Gaye - Não me lembro em que ano, mas lembro de quando recebi a notícia de que Marvin Gaye tinha sido assassinado pelo próprio pai. E fiquei triste na hora, porque afinal de contas era o cantor de "Sexual healing", "Ain´t no mountain high enough" e da maravilhosa "What´s going on". Esta última, quase mágica. Barulho de pessoas no início, de repente entra um baixo estonteante, uma percussão quase imperceptível e um sopro que só a mente de Marvin poderia engendrar. E claro, a voz, infinita, quase orando a deuses esquecidos.
4- B.B.King - É guitarrista, conhecido como guitarrista. Mas cantando, o velho Blues Boy King é um rachador de almas. A obra máxima dele, na minha opinião, é de fato "Guess who", em que ele abusa do direito de ser cantor. "Darling you know i love you", "Any other way" e "Life ain´t nothing but a party" são outras em que o talento dele de cantor extrapola os limites. Mas quem disse que B.B.King tem limites em sua genialidade?
5 - Richie Havens - No Woodstock, Havens é aquele negão meio sem dente, que toca "Freedom" em um violão, só ele e o violão e milhares de pessoas. "Clap your hands, clap your hands", ele canta, e as pessoas que ainda entendem alguma coisa batem palmas, extasiadas. Mas recentemente ouvi na casa do rock n roller Rodrigo Cobra a versão para "She´s leaving home", dos Beatles. E me comovi mais uma vez com mr. Havens.
6- Freddie King - Outro guitarrista de blues, autor de clássicos como "Hideaway" e "Love her witrh the feeling" (minha preferida). "She shakes all over/when she walks/she makes a blind man see/makes a dumb man talk/you´ve got to love her with the feeling", é o recado que Freddie King dá para os sujeitos que querem mulheres apenas para ascender socialmente e dizer para os outros que tem mulher. Não, não, você tem que amá-la com o sentimento. Boa, mr. King.
7- Muddy Waters - Muddy "Mississipi" Waters é um dos maiores gigantes do blues. Praticamente obrigatório o disco ao vivo (de mesmo nome) em que ele toca com o albino Johnny Winter, cantando "Mannish boy", "Hootchie Koochie Man" e "Nine below zero", todos clássicos indiscutíveis do blues "de breque".
8- Sam Cooke - Pode vir o tecno, pode vir o trance, o drum e bass, pode vir qualquer coisa eletrônica em que os defensores afirmem que a voz humana não é necessária. Mas uma audição de "Bring on home to me", lindíssima composição de Sam Cooke (autor também de "Having a party", música cantada pelo Rod Stewart em seu Unplugged), para qualquer sujeito com um mínimo de sensibilidade perceber que a voz humana é indispensável. É preciso saber que há sofrimento para aguentar o sofrimento. Ouvindo Sam Cooke lamentando, a gente percebe que as coisas poderiam ser piores. A gente pelo menos pode ouvir Sam Cooke. Ele ainda tinha que cantar.
9- Robert Johnson - Jamais poderia ficar de fora o cara que fez pacto com o tinhoso para tocar guitarra e acabou deixando para o mundo a melancólica, angustiante "Love in vain", gravada pelos Stones (sem crédito) no maravilhoso "Let it bleed".
10 - Jimi Hendrix - Surpresa? Não, não é só a guitarra de Hendrix que comove. Sua voz na gravação original de "Little Wing" também fica marcada na memória. Espetacular também "Remember" (bônus do atual "Are you experienced"), "If six was nine" e "Castles made of sand" (as duas últimas do "Axis bold as love").
Ficaram alguns de fora, claro. James Brown, Howlin Wolf, Clarence Brown, e principalmente o gaitista Sonny Boy Willianson. Mas como sabem, a graça principal de fazer listas é ouvir os outros apontando quem deveria e quem não deveria estar nelas. Eu acho que talvez o Ray Charles não deveria estar - como Pelé.