26 dezembro, 2001

Bichos: A tartaruga

Crianças que éramos, só por esse fato, a tartaruga já se tornava um bicho estranho. Ativos e alegres, olhávamos curiosos aquele animal cascudo e retraído em sua banheira abóbora cercada de alfaces na área do apartamento. Não lembro seu nome . Durante a maior parte do tempo a ignorávamos, ocupados que estávamos em fazer besteira, tais como quebrar janelas de incêndio, promover campeonatos de cuspe à distância, arremessar bolas enormes de jornal da janela do apartamento ao telhado vizinho, escalar as paredes do corredor até o teto feito “meninos-aranha”, sem contar os inúmeros piques e as comidas modernas que enchiam a geladeira então farta da minha infância nos chamando para comer a toda hora.
A tartaruga tinha dono. Melhor dizendo, dona. Minha irmã mais velha era a respeitável proprietária da lenta criatura e talvez por isso a única cena que me lembre seja a da briga de sabão, ocorrida na área, entre ela e meu irmão. Até hoje não sei como os dois conseguiram a façanha, mas arremessaram a tartaruga do quarto andar abaixo. Entre risos inocentes e a expectativa de morte e bronca, os quatro irmãos olhavam de cima de pequenos bancos da cozinha devidamente enfileirados na varanda da área a tartaruga virada de cabeça para baixo na divisão entre o segundo e o primeiro andar do edifício.
Resgatada com a ajuda do porteiro, envolta na curiosidade mórbida dos vizinhos e no olhar repreensivo de nossos pais, a vida voltou ao normal de modo que a tartaruga foi novamente legada ao seu pacato canto, até que outra briga de sabões acontecesse, o que não aconteceu. Talvez por isso não consiga me lembrar do fim do primeiro bicho que um dia tivemos.