24 outubro, 2001

Zenon e Inagaki
Lá em Sampa o pessoal fala "pagar um pau para fulano", quando um cara admira o outro, ou o eleva às alturas. Quem me ensinou foi um amigo, Juliano Costa, repórter de esportes, que diz "pagar um pau pro Zagallo". E para o Santos, claro, time de seu coração. Só que eu confesso pagar um pau para Alexandre Inagaki, torcedor do Guarani de Campinas (Neneca, Mauro, Gomes, Édson e Miranda; Zé Carlos, Renato e Zenon; Capitão, Careca e Bozó, quem não lembra?), e um dos editores do SPAM ZINE, uma das melhores coisas da literatura internética. Você entra no site, se cadastra, e passa a receber todos os domingos (é levinho) um email com textos sensacionais - alguns SPAM ZINEs são temáticos. Parece que no próximo domingo ou no outro é sobre música.
Como aperitivo, só para vocês terem uma idéia do que tem no SPAM ZINE, segue aí um dos textos maravilhosos do Inagaki (publicado aqui neste blog sem autorização, claro!):

Torneiras abertas à toa. Leila, eu ainda não tô bêbado, relaxa. Quando eu me levantar desta mesa e gritar pra todo mundo que encontrei a Resposta Definitiva, aí sim é motivo pra você começar a se preocupar, ok? Teve uma vez que bebi tanto que achei que tinha virado médium, incorporei o Nietzsche, a Rita Hayworth e o Wilson Grey na mesma noite. Meus amigos sentiram que era hora de me arrastar pra casa quando comecei a cantar Put the Blame on Me e a fazer um strip no meio do velório. Não, eu tô bem, eu tô bem. Mas do que é que estava falando? Ah sim, torneiras. O problema deste mundo são esses amores não-correspondidos e desperdiçados a toda hora, entende? Como paixões que são despertadas negligentemente, ilusões platônicas que acabam com gosto de soco na alma, noites de sexo mal interpretadas, amores exilados que não encontram seu lugar no mundo, como peças extraviadas de um quebra-cabeça. O problema todo se resume nisso, corações e cérebros não falam a mesma língua. A vida seria muito menos dolorida se a gente tivesse o dom de se apaixonar por aquela pessoa que nos oferece o coração. Deveria ser tudo questão de um clique, e pronto: aquele amigo que a gente só consegue enxergar como confidente assexuado se transformaria no príncipe encantado. Mas não, não nesse rascunho porco de mundo em que vivemos. Quem sabe na versão 2.0.

É, eu sei, não precisa falar. Você falou que eu ia me estrepar com aquela menina, mas deixou de usar pedagogia comigo, pô. Sim, pode rir, vou fazer o quê? Leila, você se esquece do quanto todo homem é crianção e imaturo, e de como a gente se torna repentinamente burro quando se interessa por alguém? Esses lances de sermão, do tipo filho não coma o que caiu no chão, cuidado com as más companhias, não aceite balas nem arquivos attachados de estranhos, yada yada yada, não dão certo. Tem que quebrar a cara pra aprender, errar, cometer novos erros. Mas deixa pra lá. Fala sério, esse vinho não parece que fica melhor a cada gole? Leila, relaxa: tá tudo sob controle. Cê tá parecendo minha mãe, só falta pedir pra que eu arrume meu quarto. Meus livros estão todos empilhados, um dia te mostro a Torre de Pisa que fiz com meus Goethes, Fonsecas, Trevisans, Borges. Uma lindeza. Cê tá ansiosa pra ver o meu quarto? Você não sabe do que está falando, aquilo lá é um buraco negro, tudo que entra some e vai parar em outra dimensão.

Mas olha só: talvez o amor não passe de um erro de programação. Um bug atravacando o perfeito funcionamento do sistema. Um vírus no código-fonte da Matrix. Uma maldição que surgiu com a intenção única de inspirar cornos a escreverem músicas sertanejas, e de fazer minhocas treparem fulminantemente no drive-in do meu cérebro, numa putaria incessante que me atormenta 25 horas por dia. Leila, eu juro pra você: um dia vou espirrar e minhoquinhas sairão voando de minhas orelhas. Não ri não, eu tô falando uma verdade trágica: essas promíscuas malditas estão me deixando mais doido do que já sou, enchendo minha cabeça com a imagem onipresente daquela vagabunda incapaz de retribuir todo o amor que eu poderia dar a ela. Vou parecer alienado, e talvez eu seja mesmo, mas a verdade é essa: amores desperdiçados são a grande tragédia da humanidade. Se Franco, Pinochet, Suharto e todos esses babacas tivessem uma mulher legal, talvez não ficassem tanto tempo pensando em merdas totalitárias. Caralho, tô ficando mesmo bêbado. Ops, desculpe aí. Falo palavrões pra caralho.

Tem vezes que dá vontade de dizer pra aquela menina: porra, será que você não vê que eu não sou só ombro, que eu tenho boca, mãos, língua, pau? Porque estou farto de ouvir as desventuras amorosas daquela vadia com Danilos, Gérsons, Alans, Rodrigos e todo um bando de putos batizados com esses nomes típicos de classe média metida a burguesa, uns mauricinhos prestáveis pra trepar, mas que roncariam estrepitosamente se fossem obrigados a ouvir um quinto das lamúrias e confidências que a desgraçada me faz. Isso é que dá virar confidente. Se eu quisesse realmente comê-la, jamais poderia deixar que nós nos tornássemos amigos. Com certeza ela só consegue me ver como um terapeuta assexuado, um ombro-travesseiro, jamais como um macho. Caralho. Se ela soubesse que por detrás desta fachada inofensiva se esconde um gigolô pós-graduado em usos alternativos de chantily e algemas. Jura que você pagaria pra ver isso? Engraçadinha. A verdade é que você só conhece uma pessoa entre quatro paredes, despida, literalmente e simbolicamente, de todas as máscaras que a gente usa no dia-a-dia.

Mas ainda bem que tenho você pra me agüentar. Ouvir meus desabafos é como pagar pecados em vida, quando você morrer vai direto pro céu. Onde mais eu acharia uma amiga como você, que presta atenção em tudo o que eu digo? Ou isso, ou você arqueia as sobrancelhas como ninguém. Brincadeira. Às vezes me pergunto o que leva você a aturar minhas rabujices. Você deveria ser terapeuta. E não adianta me dizer que você só faz essas coisas por minha causa. Você é uma santa, a Madre Teresa dos chatos bêbados como eu. Um dia ainda ganho na Sena e encontro uma mulher tão linda e inteligente como você. Um clique? Ué, não entendi. Burro? Sim, mas qual é a novidade? Não, não. Pode deixar, eu pego um táxi. Ok. Garçom, a conta.

Leila, como é bom ter uma amiga como você.