23 junho, 2002

Minha prima
Amanda, minha prima, está escrevendo no site da cidade onde ela mora, Barbacena. O endereço do site é http://www.barbacenaonline.com.br; desnecessário dizer que meu orgulho é gigantesco. E acrescento: minha prima, que tem 20 anos, e acaba de entrar para uma faculdade de comunicação, escreve críticas de cinema um milhão de vezes melhor do que muitos criticozinhos de bosta que assinam nos nossos jornais. E em qualquer discussão sobre cinema, minha prima dá um banho em mim e em qualquer "dândi" que acha que sabe tudo do assunto.Tenho o maior orgulho de tudo o que fez por aí - aos 19, já foi aos EUA, coisa que ainda nem esbocei fazer...
E o que é melhor, não conta vantagem em cima disso. Agora, Amandinha, pelo amor de Deus, não vai dar certo chamar a Julie Delp y de morna...ela é mulher para casar!
Segue a crítica:
TRILOGIA DAS CORES
Nossa coluna desta semana homenageia Krzysztof Kieslowski (1941 – 1996) um diretor polonês que produziu três das melhores obras da década passada. Influenciado por seu compatriota Andrzej Wajda, Kieslowski fazia filmes para pequenas platéias, estreando no ano de 1979 com uma sátira à corrupção dentro de uma fábrica intitulada "Camera Buff", sem título em português.
Com uma câmera introspectiva e que sempre se preocupou antes de tudo em humanizar a tela, Krzysztof Kieslowski dirigiu antes da trilogia outros três filmes famosos no Brasil: "Não Amarás", "Não Matarás" e "A Dupla Vida de Verónique", todos três disponíveis em vídeo e que são obrigatórios para se conhecer a alma desse diretor, que tristemente se decepcionou com o cinema depois de filmar "A Fraternidade é Vermelha", declarando que não mais queria saber de trabalhar com cinema, nem sequer via mais filmes, e disse que o cinema não possuía emoção suficiente para ele, e se dedicou à pintura; apenas por poucos meses, vindo sofrer um ataque do coração em ‘95 e a falecer deste mal logo depois.
Mas emoção é o que há de sobra nestas três pequenas obras-primas que pintam um retrato muito poético, ora pessimista sobre a europa unificada do fim do século XX. Sobre essa trilogia das cores (da bandeira da França), Kieslowski declarou tê-los feito contra a indiferença, em especial o último (e certamente o melhor), "A Fraternidade é Vermelha". Seus filmes são sim, respostas sensíveis e muitas vezes tímidas à frieza do mundo. Os retratos se inter-relacionam e culminam com uma das mais belas passagens do cinema, o desfecho d’A Fraternidade é Vermelha"; mas comecemos em ordem pois para se entender o espírito da trilogia é necessário que se assista aos três filmes, na ordem certa, e de preferência seguidamente.
"A Liberdade é Azul" conta a estória de Julie, vivida por Juliette Binoche, que acaba de perder o marido e a filha em um acidente de carro e com isso começa a ver as coisas de modo diferente, percebendo as outros seres ao seu redor, descobrindo a libertação de tudo.
A morte não é tratada no filme apenas como perda, mas como simulacro da tal libertação, e a fita tem interrupções, intermezzos de quase dois segundos em determinadas cenas, onde tudo escurece e começa uma música composta pelo marido falecido, o que significaria uma pausa, um pequeno vôo da alma da personagem, uma síncope no dia-a-dia atribulado cheio de pequenos problemas aqui e ali, onde a personagem parece nunca se encaixar. É como se ao perder as pessoas que mais amava, Julie se atirasse com paixão, porém com serenidade a uma reflexão onde ela se permite uma reaproximação com a mãe, com a vizinha (que representa um antagonismo ao personagem de Julie, por ser uma stripper sem qualquer laço afetuoso com ninguém), com um antigo amor e até com uma amante de seu falecido marido.
Buscando algo de grandioso na vida, ela parece estar nascendo de novo.
É essa a impressão que se tem nas cenas em que ela nada (e ela nada o filme inteiro) , na mais azul piscina já filmada até hoje.
É apoteótica a fotografia deste primeiro filme da trilogia (assim como de todos eles) e ao final da película, você está convencido de que a liberdade é de fato azul, muito azul.
"A Igualdade é Branca" é tido por muitas pessoas, justamente, como o menos importante dos três filmes e o menos importante de Kieslowski em toda sua carreira. Na tentativa de fazer uma comédia, o diretor acabou fazendo dele o mais deprimente e mordaz; é sim, em alguns momentos, cômico, mas extremamente cruel ao retratar a vida de Karol, um polonês que após ser importunado até a loucura e abandonado pela mulher Dominique, (a morna Julie Delpy). Ele se encontra na fria Paris sem falar uma palavra de francês. A situação de nenhum imigrante é fácil em nenhum lugar do mundo, mas no caso de Karol a banda vai tocar de modo diferente, ele enriquece e começa então a tramar uma para Dominique, querendo que ela sofra,apesar de amá-la loucamente;
O filme fica doentio e perturbador ao lidar com esse paradoxo do amor X ódio, riqueza e miséria, fazendo uma clara analogia ao fim do comunismo.
Tratar do tema de imigrantes em um filme que homenageia a igualdade foi o trunfo de Kieslowski, que carregou no gelo e na neve para caracterizar o tom glacial deste filme, que, na minha vã opinião, apesar de ser o menos brilhante dos três, é onde mais se esclarece a versatilidade de Kieslowski ao transformar cores, cenários, fotografia em não apenas mais uns elementos, mas sim personagens do filme. Na cálida brancura da igualdade, a mensagem deste filme é a mais política e crítica da trilogia.
E finalmente, "A Fraternidade é Vermelha", dos três, o mais festejado, mas que não dá pra ser visto (não é recomendado, entenda-se) sem que se veja antes os outros dois. A Fraternidade conta a estória de Valentine e seu encontro com Rita, uma cadela por ela atropelada, cujo dono é um velho juiz aposentado vivido por Jean- Louis Trintignant, que distrai todas as suas horas ouvindo clandestinamente as conversas telefônicas de seus vizinhos. Valentine, docemente vivida por Iréne Jacob, decide levar a cadela Rita ao seu dono e assim conhece o velho juiz, amargurado e só, cuja estória de vida é cheia de perdas. Nesse encontro, mais que acidental, se revela a face humana do filme, (e de Kieslowski) quando Valentine, apavorada com as atitudes e falta de perspectivas do velho juiz, (que, sintomaticamente nem nome tem no filme, parecendo representar o próprio velho continente, encarquilhado e sem esperanças) decide então arrancar de seus olhos as lentes cor-de-rosa e passa de uma modelo fotográfico, superficialmente conformada e passiva, a de repente começar a querer enxergar a verdade, que é traída, sozinha também e resolve agir contra as injustiças, as indiferenças do mundo. Fosse em Hollywood, Iréne Jacob vestiria uma capa, daria uma pirueta e se transformaria na mais nova heroína do cinema salvando Nova Iorque de um ataque aéreo; mas como isso é apenas mais um episódio do cinema nada fantástico de Krzysztof Kieslowski, ela se contenta em salvar do tédio absoluto um velho deprimido, uma cadela moribunda e um irmão viciado em drogas. E sem apelar para um lado piegas, o filme reúne no fim todas as características humanistas dos outros dois, e tem o desfecho que merece, lavando a alma do espectador. Sem cair nem um segundo o ritmo ou a narração, A Fraternidade é Vermelha se firma como o canto de cisne de um grande diretor, um dos melhores filmes de fim de século, genuíno exemplo de como se deveria fazer cinema.