24 novembro, 2001

Entre a loucura e a solidão

Lado de baixo

Tudo, tudo porque a vida se tornou comum. Ou menos que isso, ou outra palavra mais entediante do que "tediosa", enfim, tudo isso, e que às vezes o levava a dizer a frase "O mundo não é o melhor lugar que existe para se viver", ou coisa assim - ou seria "não é um lugar legal"?
- Você tem uma pinta bonita aqui no pescoço - ele disse, diante da estranheza dela, quem era esse que ficava olhando-a, ela que estava tão infeliz? Não, não olhe para os infelizes, eles têm vergonha do seu estado indiferente e banal. Mas ele olhava diferente.
- Quer uma bala? Essa é daquelas fortes, heim? Ela só olhava, recusando com a cabeça. No Metrô tem cada maluco, ela
pensou, mas esse até que era simpático, bonito, branco, ocidental, bem vestido, todas essas coisas que fazem a gente perder o medo do nosso semelhante. Principalmente da parte dela, arquivista cansada, aos 40 anos, separada e sem filhos, sabendo que a vida acabou ficando isso mesmo, tudo parou, não dá mais para sonhar - férias de 12 em 12 meses, o Natal, a família, o Carnaval e está bom assim, pouca coisa muda. E de vez em quando comprar o último CD do Roberto.
"Próxima estação, Uruguaiana, desembarque pelo lado direito, atenção para o vão entre o trem e a plataforma".
- Você vai saltar aqui no Centro? A gente podia tomar um sorvete.
Ela lembrou que devia ter uns dez anos que ela não tomava um sorvete. Talvez porque tivesse tirado férias no inverno, e aí perdeu a vontade, o frio a intimidou - como tudo, no mais. Tinha sido um dia quente de verão no Rio de Janeiro, ela bem que sentiu vontade, mas ainda estava com medo do rapaz.
- Por que você não fala nada?
Ela sorriu, pensando em dizer algo, e com o sorriso acabou dizendo muita coisa, no fundo a vida tinha uma finalidade ali, naquele
momento. O sorriso de uma mulher para um homem, no final acabava tudo em líquidos, gozo, ejaculação, mas se o caminho fosse o mais tortuoso - diria romântico - a dor da racionalidade vital seria superada. Ela sorriu, e ele também.
- Me dá um beijo?
Ele estava ousado, mas era assim que se sonhava. Ela, triste, chamou a atenção dele, que viajava em pé, e minutos antes tinha entrado na estação Afonso Pena. Começou a olhar pelo vagão, viu diversos tipos, homens rudes, rapazes simples, negros com roupas de oficinas, senhoras idosas, e de repente a viu, com uma sacola de loja na mão, onde levava suas coisas
e pastas, e uma bolsa na outra, e no rosto apenas uma desesperança sem alarme, um sentimento mais neutro ainda que o conformismo. Era aquilo mesmo, seu emprego, sua casinha, a TV, a novela. E se fosse no século retrasado, quando não tinha TV? Seria o que? Ela não pensava nisso, tudo está bem diante da TV.
- Ah, vai? Dá um beijo?
O hálito do rapaz era fresco, talvez por causa da bala. Seus olhos eram castanhos - há muito tempo ela não via os olhos de um homem assim tão de perto. Ela não sabe se por causa dos olhos, mas sentiu vontade de trepar com ele, abrir as pernas e deixar ele invadir, dominar, dizer palavras sujas. Com todo esse pensamento, sua calcinha ficou molhada.
"Próxima estação, Flamengo, desembarque pelo lado direito"
- Fica com meu telefone?
Ela até concordou, ele anotou o telefone no papel da bala, ela guardou. Antes de saltar no Flamengo, ele foi mais ousado e deu um beijo no pescoço dela, perto da pinta. Ela fez uma cara de desagrado, não gostou dele ter roubado um beijo.
Naquela noite, ela ficou olhando para o papel em cima da mesa solitária da sala. Nem ligou a televisão. Se masturbou como há muito não tinha coragem de fazer, e foi dormir.
Quando acordou, não achou o papel com o telefone do rapaz. Tudo bem, pensou. A vida é essa mesmo, meu emprego, minha tv, minha casinha. Olhou para o relógio. Era domingo e não tinha Metrô.